Wednesday, November 26, 2008

CAPITULO 3 - A PROBLEMÁTICA DA INSEGURANÇA HUMANA EM MOÇAMBIQUE

Os processos de democratização em Africa : Que contributos para segurança humana - o caso de Moçambique

Arão Dava

Tal como nos referimos (ver 1.3.4), na abordagem de segurança humana, o indivíduo é o objecto referencial, isto é objecto central de segurança. Este objecto referencial, estará inseguro quando estiver privado da garantia das suas necessidades básicas, como as liberdades políticas, económicas, culturais e sociais, a paz e o desenvolvimento. Tal como notaremos a seguir, factores internos e externos concorrerm para que Moçambique caminhasse rumo a uma situação de insegurança humana generalizada desde os primeiros anos da independência até aos inícios da década de 90 do século passado.

A independência de Moçambique, em 1975 acontece numa altura em que as Relações Internacionais e regionais eram fortemente dominadas pelas tradições do Realismo com o Estado nacional moderno a constituir o objecto referencial de segurança a ser protegido. Neste sentido constituíam ameaças externas à Segurança Nacional, a agressão militar, espionagem, operações encobertas, invasão territorial e o bloqueio económico. A nível interno as ameaças eram os apoios internos àquelas ameaças externas, acrescidas a noção de subversão[1]. Neste período, a nível internacional o factor predominante era Guerra Fria e a nível regional, a sua réplica, com o domínio dos regimes minoritário de Ian Smith no Zimbabwe e do apartheid na África do Sul.

A réplica da Guerra Fria na região ( proxy wars) terá contribuído para a situação de insegurança humana (medo e as carências), traduzidas na pobreza, injustiça, exclusão política e violência física e estrutural (política, económica e social) particularmente em Moçambique e Angola, cuja alteração passava necessariamente pela democratização.

A história recente de Moçambique mostra claramente que a insegurança humana resultou tanto de factores externos ( Guerra Fria e sobretudo o regime do apartheid) como de factores internos atinentes ao processo de governação do país.

3.1 – FACTORES EXTERNOS

Moçambique conquista a sua independência num contexto internacional marcado pela Guerra Fria, um conflito bipolar cujas “regras de jogo” preconizavam que as vitórias de um constituíam a derrotas do outro.

A medida que as independências iam acontecendo tornava se cada vez mais evidente a replica da Guerra Fria, a nível regional. Na época, a região era dominada pelos regimes minoritários da então Rodésia do Sul (Ian Smith) e da África do Sul (apartheid) que se opunham a libertação dos Estados da região[2]. Agostinho Zacarias explica que quando alcançassem as independências os países, eram arrastados para o debate Este-Oeste, antes mesmo de efectuarem o debate nacionalista sobre suas estratégias de desenvolvimento. Os que tinham importantes relacionamentos com a URSS eram vistos pelos EUA como potenciais inimigos e vice-versa. Este facto terá deixado pouco espaço para que os novos regimes mergulhassem nas suas próprias realidades e definissem por si próprios as suas opções estratégicas e estratégias de desenvolvimento (Zacarias, 1991:144).

Havendo por parte do ocidente a necessidade de travar a expansão do comunismo, o regime do apartheid, que desde o Fim da Segunda Guerra Mundial, tinha conseguido se rodear de alguns “Estados tampão”[3] favoráveis ao seu governo, apresenta-se como defensor e bastião do capitalismo na região.

A independência de Moçambique em 1975, foi percebida como uma forte ameaça à África do Sul e Rodésia do Sul, os dois regimes de minoria branca que restavam na região. Com a independência desta colónia portuguesa, os regimes de minoria branca, percebiam uma ameaça dupla. Por um lado, a ameaça de perder o seu poder em benefício de uma região de regime de maioria e por outro lado o facto de esses regimes poderem vir a ser comunistas. A propósito, Samora Machel tinha escrito poucos anos antes do fim da luta armada

“ Damos a nossa solidariedade e apoio total ás forças nacionalistas que na Rodésia, África do Sul e Namíbia lutam contra o regime de Salisbúria e de Pretória. A luta de libertação dos povos da África Austral tem impacto imediato e directo na nossa luta e explica os laços próximos que nos unem.” (citado por Muslow, 1985:70).

Este posicionamento de Samora deixou clara a sua visão sobre o “Status Quo” regional e que a independência de Moçambique não seria um fim sem que a região não estivesse totalmente liberta da dominação minoritária.

Efectivamente, Moçambique constituiu-se em Estados de orientação marxista-leninista, e com o apoio da União Soviética, de Cuba e da China, trabalhou com o ANC, na África do Sul e com a ZANU-FP, na Rodésia do Sul, numa iniciativa destinada a derrotar a dominação minoritária branca na África Austral. Cinco anos depois da independência de Moçambique, a Rodésia do Sul torna-se também independente, e adopta o nome de Zimbabwe pondo fim ao regime de minoria branca.

O papel de Moçambique para a independência do Zimbabwe e para a transformação da Organização dos Países da Linha da Frente, OPLF[4] numa organização de cooperação regional (SADCC) destinada a diminuir a dependência económica da região especialmente em relação a África do Sul trouxe perturbações à preponderância sul africana sendo deste modo interpretadas em Pretória como grande ameaça a Segurança Nacional[5], e provocando deste modo uma resposta rígida da África do Sul, no sentido de preservar a intocabilidade do apartheid (Abrahamsson e Nilsson,1998:73-107).

A resposta rígida sul-africana consistiu na reformulação radical da política de confronto com a oposição, pondo fim a política de desanuviamento e dando início a chamada Total Nacional Strategy sob liderança do Primeiro Ministro P.W. Botha e do Ministro da Defesa, Magnus Malan de modo a, de uma maneira mais agressiva, possibilitar a sobrevivência do sistema do apartheid.

O cerne da Total Nacional Strategy era a abordagem "holistica" e militarista de combate ás ameaças ao regime do apartheid, tanto domesticamente quanto internacionalmente. Esta estratégia tinha como ponto principal a desestabilização[6] militar directa, através da intervenção em larga escala, sem contudo declaração de guerra em países da região. Além disso, ela previa assistência a grupos anti-governamentais (UNITA em Angola e RENAMO em Moçambique), assistência financeira a guerrilheiros, sabotagem a alvos económicos e militares dos OPLF, coerção económica e envolvimento em golpes militares (Abrahamsson e Nilsson, 1998:89).

Segundo Hanlon, (1986:29) a desestabilização levada a cabo pela África do Sul não foi somente realizada como defesa do apartheid. As consequências catastróficas da desestabilização em forma de sofrimento humano em Moçambique são, em grande escala, um efeito de duas diferentes “necessidades” políticas e internacionais que coincidiram : por um lado, a necessidade sul-africana de defender o sistema do apartheid e, por outro lado, a necessidade “ocidental” geral de recolocar as experiências socialistas do terceiro mundo na esfera ocidental.

A Total Nacional Strategy era uma resposta a uma análise que indicava que a África do Sul estava em face de uma possível extinção, isto e, uma devastação total. Embora tal devastação fosse apresentada como um "complot" comunista, a sua força retórica era grande e residia em dois aspectos :

1. Um dizia respeito a percepção do perigo vindo da União Soviética, agindo na região por via de Moçambique e Angola independentes, através Congresso Nacional Africano (ANC) e da Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO).
2. O outro consistia na luta contra o sistema do apartheid em favor de um sistema político baseado no princípio de um homem – um voto.

O primeiro era principalmente analisado sob forma de uma ameaça ideológica ao capitalismo e a economia de mercado, enquanto que o último tocava muito mais profundamente a comunidade "bóer" sul-africana.

Embora as consequências ideológicas de uma tomada de poder comunista fossem seguramente horrorizantes no meio político conservador sul-africano, a percepção de uma extinção da cultura, valores e missão histórica dos "boers" na região era encarada quase que como um holocausto. Daí que todos os meios foram usados para debelar as ameaças (Abrahamsson e Nilsson, 1998:89).

No quadro da implementação Nacional Total Strategy as autoridades sul africanas, após a independência da Rodésia do Sul, aproveitam-se da MNR, um movimento criado pelo regimes de Ian Smith para travar a luta de libertação do Zimbabwe, para as suas acções de desestabilização em Moçambique (Taju:1988).

Segundo Abrahamsson e Nilsson, (1998:163) instrutores militares sul-africanos foram colocados em diferentes bases do território moçambicano e ensinado a tirar proveito das contradições locais criadas pela governação da FRELIMO (ver 3.2 deste capitulo) para se estabelecerem nas zonas rurais de Moçambique.

O padrão era de que após um primeiro período de alguns meses em que se adoptava uma atitude suave em relação a população, começava a desestabilização, ou seja ataques destruidores contra todas as infra-estruturas que representavam a FRELIMO ou o Estado.

Segundo Abrahamsson e Nillson (1998 : 253-256) as pessoas que eram membros conhecidos da FRELIMO ou os funcionários públicos, tais como professores e pessoal de saúde, foram mortos e mutilados. A população que vivia em aldeias ou pequenas localidades, foi alvo de perseguições para se sentir obrigada a fugir para o mato e afastar-se da influência da FRELIMO. A partir da segunda metade de 1982, a desestabilização militar utilizou todas as formas ao seu dispor dirigindo-se contra dois tipos principais de alvos :

Em primeiro lugar as infra-estruturas importantes do ponto de vista económico. Com a destruição destas infra-estruturas como estradas e pontes ficava aniquilada a capacidade do Estado de fornecer aos cidadãos, condições básicas de sobrevivência.

Em segundo lugar as infra-estruturas sociais do campo, especialmente escolas e instituições de saúde. A este respeito foram especialmente claros, os ataques contra instituições de saúde e escolas com regime internato. Assim, mandar os filhos para um internato ou ser internada numa maternidade do campo implica muito mais risco do que estar fora das instituições modernas da sociedade (que representam o Estado).

Em consequência desses dois tipos de acções, no fim da Guerra, 28% da rede de estrada estava destruída, isto é intransitável, 35 % degradada e a ponte sobre o rio Zambeze, que liga o norte e sul destruída; as linhas-férreas de Sena, ligando Tete ao Porto da Beira e Cuamba-Lichinga vital para o acesso de Niassa ao porto de Nacala estavam destruídas; cerca de 30 % dos furos de água na zona rural foram tornados inoperacionais, 70 % da barragens e 30 % do sistema de irrigação tornaram-se inoperacionais; cerca de 30 % da rede armazenista retalhista (loja e cantinas) foi destruída; 87 % das rede de correios ficou destruída, 70 % dos escritórios da administração, 58 % dos veículos, 50 % da rede da rádio-transmissão das administrações distritais e localidades foram destruídas; cerca de 40 % dos centros de multiplicação de semente, 38 % dos viveiros de plantas foram destruídos ou tornados inoperacionais, 66 % dos tanques carracicidas para gado também foram destruídos ou tornados operacionais (Diogo, 2002: 210-211).

Cerca de 46 % da rede escolar de ensino primário (EP1) e 28 % das escolas técnicas rurais foram destruídas ou tornadas inoperacionais; 36 % dos postos de saúde, particularmente nas zonas rurais, também foram destruídos ou tornados inoperacionais (Diogo, 2002: 210-211). Estima se que um milhão de pessoas tenham perdido a vida, mais de cinco milhões e trezentos mil (33 % da população) forçadas a deslocar se dentro do país, mais de um milhão e quinhentas mil (9,4% porcento da população) fora do país e cerca de cem mil tenham feito parte das forças da FRELIMO e da RENAMO (Diogo, 2002: 210-211).

Estes dados mostram claramente que as pessoas que no deveria constituir objecto referencial de segurança, foram as principais vitimas. A insegurança humana resulta do medo e das carências. Devido a guerra as populações viviam inseguras pelo medo de serem usados como soldados, ou simplesmente mortas. A destruição de infra-estruturas reduzia a capacidade não só do Estado fornecer os meios de sobrevivência a população mas a capacidade das próprias populações satisfazerem as suas necessidades básicas, privando as do acesso a educacao, saude, desenvolvimento e sobretudo da propria vida..

3.2 – FACTORES INTERNOS

A independência de Moçambique em 1975, trouxe consigo as expectativa de bem estar, isto é, de liberdades do medo e das carências, assumidos como resultantes da colonizacao. Esta expectativa acabou sendo frustada poucos anos depois da independência, isto porque, as opções político-económicas do Estado, conduziram a alguns extractos da população moçambicana, (principalmente nas zonas rurais como veremos adiante) a uma situação de privação relativa. Só para recordarmos, a privação relativa constitui o fosso entre, por um lado, o que consideramos como sendo nosso direito ter, fazer, ser e por outro lado a nossa percepção sobre aquilo que outras pessoas, grupos de pessoas ou instituições nos permitem em termos de recursos e capacidades para satisfazer aquilo que assumimos como sendo nosso direito (Festinger, 1962 :262).

Privando as populações da satisfação das suas necessidades básicas, o Estado tornou-se deste modo promotor de insegurança humana, reduzindo ao objecto referencial de segurança - o homem – o direito do seu bem estar e remetendo-o ao medo e as carências, isto e a privação do gozo das suas liberdades políticas, económicas e culturais, que se traduziam na pobreza, injustiça, e violência física e estrutural (política, económica e social).

A segurança humana só pode ser alcançada através da garantia de factores como a democracia, direitos humanos, desenvolvimento económico, sustentabilidade do meio ambiente e estabilidade militar tendo sempre como referencia primaria as pessoas (Solomon e Cilliers 1996:6). Entretanto, no processo de construção do Estado moçambicano, “o partido único” adoptou, sob ponto de vista político, um sistema socialista “ditatorial”, sob ponto de vista económico, uma estratégia de desenvolvimento socialista e, sob ponto de vista militar, uma estratégia de segurança “estato-céntrica”, consequentemente o Estado vive 16 anos de instabilidade politico-militar e economicao.

Assim, a esperança dos moçambicanos em ver a sua segurança garantida com a independência tornou se rapidamente num pesadelo, devido à desestabilização sul-africana do apartheid, contra o modelo de governação e às estratégias de desenvolvimento adoptadas pela FRELIMO.

Ao invés de ser promotor de segurança, o próprio Estado acabou virando factor de insegurança do indivíduo, nomeadamente ao adoptar um modelo político de orientação socialista e de partido único que acabou ignorando totalmente os direitos e liberdade individuais a favor das colectivas, ignorou igualmente as especificidade culturais e religiosas a favor da modernidade de um Estado laico, os valores tradicionais a favor da modernidade do Estado, ignorando as diversidade tribal e regional a favor da nação. É preciso, no entanto, reconhecer que o modelo foi adoptado dentro de um contexto, muito próprio e se calhar necessário. Tal como explica Zacarias, na altura da independência duas opções se desenhavam para Moçambique ou se virava para o Leste ou para o Oeste[7] (Zacarias,1991:143).

O Estado moçambicano, não nasceu de eleições, referendos ou outros tipos de negociações. Ele é fruto de uma insurreição geral armada do povo, organizado e dirigido pela FRELIMO contra o regime colonial português. Esta insurreição foi fortemente apoiada pelos países de orientação socialista. A opção pelos países de orientação socialista apareceu com forma de desligar do ocidente que durante muitos anos deu apoio a Portugal.

Este facto teve consequências profundas nos processos subsequentes, nomeadamente na natureza do Poder e do Estado que se criou e no sistema político que instituiu. Foi a Guerra Fria e o apartheid arrastaram o pais para o debate Este-Oeste numa perspectiva de segurança Estato-Cêntrica e militarizada, não permitindo qualquer espaço de manobra num debate nacionalistas, numa perspectiva de Segurança Humana (Zacarias 1991 :144 e Hunguana, 2006:5)[8].

De acordo com Hunguana, uma vez proclamada a independência e fundado o Estado moçambicano, entrou-se na complexa fase da luta pela afirmação, sobrevivência e consolidação. Assim, neste processo de afirmação, sobrevivência e consolidação foi institucionalizado o “Poder Popular”, que veio a significar a “ditadura da aliança operário camponesa”, isto é, uma política geral exercida no interesse dos camponeses e dos trabalhadores, e por outro lado, a criação de instituições específicas no sentido de possibilitar a participação social na vida política (Hunguana, ibid.).

Entretanto, de acordo com Bastos, (1999:170), estamos perante uma ditadura quando, o regime político, faz uso de uma filosofia ou ideologia exclusiva ou liderante, isto é, quando o Poder é sustentado por um conjunto de ideias ou princípios que não aceitam alternativas ao modelo de sociedade vigente, nem permitem a existência legal de oposição. Bastos (ibid), acrescenta igualmente está-se perante uma ditadura quando, existe um aparelho destinado a impor a ideologia a nível político, policial educativo e económico, e por outro lado quando não existe uma efectiva garantia de direitos pessoais dos cidadãos, não existe livre participação na designação dos governantes e nem um controlo do exercício das funções dos governantes.

Como podemos observar o partido único dirigido pela FRELIMO, contribuiu substancialmente para a insegurança humana, resultando em grande parte de problemas como a pobreza, injustiça, e violência física e estrutural (política, económica e social) através das seguintes acções :

A institucionalização do “Poder Popular" e a problemática dos direitos fundamentais - Tal como nos referimos anteriormente, o “Poder Popular”, significava uma política geral exercida no interesse dos camponeses e dos trabalhadores, e por outro lado, a criação de instituições específicas no sentido de possibilitar a participação social na vida política (Hunguana, 2006:5).

Com a instituição do “Poder Popular” ficava automaticamente excluída a possibilidade de existência de uma oposição política, já que a FRELIMO, em nome dos operários e camponeses, dirigia o Estado sem alternativa nem alternância.

Segundo Lalá e Ostheimer com a independência foi adoptada uma constituição, na qual se definia o papel da FRELIMO como forca de liderança do Estado e da sociedade, bem como assegurava a legitimação do partido único, eliminando deste modo, qualquer forma de pluralismo social (Lalá e Ostheimer (2004:4). Estas autoras acrescentam que os dissidentes da FRELIMO e membros da oposição que não optaram pelo exílio, rapidamente viram se forcados a integrar campos de reeducação na província do Niassa (campos de operação produção).

A reivindicação de direitos básicos individuais, tais como liberdade de crença, opinião e associação, o pluralismo partidário, a independência dos tribunais, as eleições livres e secretas e eleição do presidente da Republica eram vistas pelo Estado como ameaças e crimes contra o Estado.

Face a um sistema político que incluía características patrimoniais, tornando o Estado numa fonte de acumulação de privilégios e recursos materiais para os que a ele tinham acesso, a exclusão era o sentimento de largos segmentos da população.

O exercício do Poder Popular a problemática de exclusão. A institucionalização do “Poder Popular”, iniciada na altura do terceiro congresso da FRELIMO, em 1977, implicou que as funções dos grupos dinamizadores[9] foram distribuídas por outras instituições novas.

Entre 1976-77 foram criadas as chamadas organizações democráticas de massas com destaque para OMM e a OJM, através das quais se estabelecia o relacionamento entre o Poder Político e a população (Abrahamsson e Nilson, 1998:256).

As Assembleias Populares, a todos os níveis da sociedade tinham de se transformar nos novos órgãos de debate popular sobre a política exercida. Assim acabava a fase espontânea de revolução e o “Poder popular” iria ser consolidado em instituições fixas. Contudo, estas transformações não constituíam somente uma simples distribuição das tarefas a realizar, possivelmente o aspecto mais importante contido na institucionalização do Poder era a visão sobre a chefia (Abrahamsson e Nilson, (op.cit.):260).

Segundo Hanlon (1984:135) com a institucionalização do “Poder Popular” a imagem da FRELIMO era também transformada. Por um lado, a imagem da FRELIMO era de um partido apenas dos melhores revolucionários do povo trabalhador e, contrariamente a situação em que todos podiam ser membros, a participação ficou limitada a uma elite. Por outro lado os critérios utilizados para escolher aqueles que podiam pertencer a essa elite eram uma grande limitação ao recrutamento.

Esta visão de elite, tal como afirmam Abrahamsson e Nilson verificava-se aquando da escolha para as Assembleias Populares. Uma pessoas que quisesse ser membro do partido ou ser escolhida para a assembleia popular, não devia ter colaborado com o poder colonial; não devia ser religiosa e não devia ser polígama (Abrahamsson e Nilson,1998: 260)

Destes critérios somente um - o não ter colaborado com a poder colonial - tinha base de apoio popular, isto porque ele dizia respeito especialmente aos régulos e a outras pessoas de hierarquia colonial que, durante o tempo colonial tinham estado ligados ao sistema colonial. As outras exigências afectavam seriamente grande parte da população, que ficou sem possibilidade de participar no trabalho político e eventualmente frustada com os “métodos de exclusão”, injustos e discriminatórios.

O fracasso da estratégia de desenvolvimento e aumento da Pobreza - Enquanto que a década de 1970 pode ser descrita em larga medida como fase da consolidação do Poder pela FRELIMO, a de 1980 revelou os primeiros sintomas de um Estado em crise. Em termos materiais e económicos, o conceito de Estado, enquanto agente exclusivamente responsável pelo desenvolvimento económico nacional, provou ser um fracasso (Lalá e Ostheimer, 2004: 4).

Moçambique tinha adoptado a orientação socialista como estratégia de desenvolvimento. No entanto, poucos anos depois da independência, a situação económica e social sofriam uma degradação crescente. As medidas de emergência para tentar suster a economia não podiam ser permanentes. Era difícil manter os níveis de emprego na indústria com os baixos níveis de rendimento ou subsidiar a improdutividade das "machambas" estatais e manter também os subsídios para a alimentação das populações urbanas ou para as áreas sociais como saúde, educação e habitação, que acabaram por conduzir a uma deterioração deste serviços (PNUD,1998:51).

O decréscimo dos níveis de produção não podia de modo algum compatibilizar com o nível de crescimento da população, pelo que foi necessário fazer uma contracção de consumo com impactos na redução do bem estar das populações e a consequente deterioração dos seus níveis de vida. O estabelecimento de aldeias comunais e a consequente recolocação das populações à força despoletaram forte resistência por largos sectores da população rural.

De acordo com o PNUD, (1998:51), nos princípios da década de 80 a estratégia socialista apresentava sinais evidentes de desmoronamento nomeadamente pelo crescimento do nível económico sem disponibilidade de divisas e pelo déficit no orçamento do Estado provocado pelos subsídios estatais á educação, saúde e despesas correntes do sector estatal, incluindo empresas estatais

Tal desmoronamento resultou na incapacidade do Estado em satisfazer as necessidades humanas básicas tais como educação, saúde, alimentação e vestuário, sobretudo nas zonas rurais. Resultou por outro lado, na privação relativa das populações, atendendo a expectativa de melhoria das suas vidas como resultado da independência.

A tradicional economia de subsistência e a iniciativa privada não tinham lugar no modelo socialista de desenvolvimento implantando, marginalizando grandes segmentos da sociedade que se desiludiam cada vez mais com a o governo da FRELIMO (Cabaço -1995 :93).

Face a este cenário caracterizado pela incapacidade do Estado em satisfazer as necessidades básicas, agravado pela exclusão da economia de subsistência e da iniciativa privada na estratégia de desenvolvimento socialista, grandes segmentos da população viviam privadas das suas necessidades humanas básicas, estando deste modo humanamente inseguras, isto se considerarmos que, a segurança humana constitui o bem estar do individuo, traduzida na liberdade do medo e das carências. Vale a pena recordarmos que nas ameacas a seguranca humana, incluimos o colapso financeiro e econonomico do Estado.

A negação das especificidade sócio culturais - O slogan “ matar a tribo para se construir a nação” foi demasiadamente propalado na fase inicial de construção do Estado em Moçambique.

Esta concepção ideológica preconizava a negação das especificidade dos grupos socioculturais, com vista a edificação de um Estado Nação. Um exemplo claro desta atitude é o discurso de Samora Machel, citado por Munslow (1985 :77-78) que ataca os "tribalistas" e "regionalistas", não descrevendo as origens do seu aparecimento como um fenómeno sociológico, mas sim como um fenómeno que possa ser morto pela vontade política.

Na opinião de Muslow a argumentação de Samora centrada na convicção de que a guerra de libertação e o Poder já tinham posto fim ao raciocínio em termos de etnias[10], daí que o "tribalismo" e o "regionalizo" não tem quaisquer raízes na sociedade, tratando-se de somente de infiltração:

“...estamos infiltrados. Há muita gente que sabe disto e não faz nada porque os bandidos tentam buscar apoio tribal. Mas a nossa luta matou a tribo. Foi a primeira coisa que nós matamos, porque a força do inimigo é o “tribalismo” Por isso não hesitamos em actuar contra os tribalistas, racistas e regionalistas. Matamos a tribo para que a nação pudesse nascer...” (Muslow 1985 :77-78)

Eliminando o direito a etnia e a tribo, Machel eliminava uma das principais fontes do legitimidade do Poder Popular.

A marginalizarão de segmentos considerados elites de certos micro-espaços em benefício de outras, contribuiu para facilitar a instrumentalização destas, tanto por interesses externos como por elites internas ávidas de poder e recursos. A construção do Estado, alicerçada na política de distrução das identidades étnica e tribal, implicou a desvalorização do poder religioso, moral ou espiritual de diversas elites locais. Esta política ameaçava valores. Tal como afirmamos no principio, em situações de opressão, discriminação, privação e isolamento, a defesa preservação de valores leva a comportamentos defensivos e agressivos. O caso de Mocambique com o elevado apoio de elites locais a RENAMO, durante a guerra de desestabilizacao, reflecte a revolta a politica adoptada pelo Estado.

Enquanto o sistema político e o Estado garantiam segurança pessoal e social não houve problemas mas, quando o sistema político e o Estado moderno deixaram de Poder garantir segurança pessoal ou social, a população tenta estabelecer e consolidar as suas estratégias tradicionais de sobrevivência que se baseiam-se nos princípios organizativos da sociedade tradicional, nos laços familiares e na responsabilidade mútua pela sociedade local (Baptista Lundim:1992: 5).

Baptista Lundin (op. cit.) acrescenta que a recorrência aos sistemas de organização social baseado na tradição não foi somente resultado das consequências catastróficas da guerra. Ela tem também origem na forma de governação adoptada pela FRELIMO, em que a nível da educação, as línguas locais são reprimidas e as práticas religiosas tradicionais e suas cerimónias são definidas como superstição que tem que ser combatidas.

Posto, isto podemos inferir que a negação da liberdades culturais, remeteu as populações a uma situação insegurança humana, na medida em que esta acção privava as populações do direito de satisfação da sua necessidade básica, a privação desta liberdade resultara na insegurança humana. Vale a pena reordarmos uma vez mais que a privacao das liberdades culturais e religiosas e uma ameaca a seguranca humana.

A exclusão da autoridade tradicional dos círculos de tomada de decisão - Nas sociedades tradicionais africanas as boas relações mútuas entre os membros da mesma família, clã ou grupo étnico constituem a base do sistema. No entanto, o Estado colonial português, com a exploração económica colonial, destruiu os traços característicos da reciprocidade pré-colonial. Para compensar os cidadãos, eles foram autorizados a conservar o direito a partes da sua cultura, tradições e práticas religiosas. O régulo tornou-se fiel da balança entre a legitimidade e a opressão colonial. A sua capacidade para fazer este equilíbrio tornou decisiva para o grau de legitimidade dos Estado colonial aos olhos da população (Abrahamsson e Nilsson, 1998:253-256).

A transformação da FRELIMO, em 1977, em partido de vanguarda Marxista-Leninista, no III Congresso, contribuiu para a eliminação definitiva de qualquer possibilidade de integração da autoridade tradicional nos círculos de tomada de decisão. Tal como afirmam Abrahamsson e Nilsson :

“a primeira tomada de medida foi a destituição dos administradores distritais portugueses. Entretanto, o distrito continuou a ser o nível administrativo mais baixo do aparelho do Estado e a FRELIMO considerava de muita importância ser representada a esse nível por pessoas que fossem da sua confiança política, assim autoridade tradicional foi abolida por decreto e no seu lugar foram colocados os comités locais do partido”. (Abrahamsson e Nilsson 1998 : 253)

A FRELIMO ao eliminar a autoridade tradicional, eliminou uma das fontes de legitimidade e impulsionou a prática de cerimónias tradicionais ilegais, o que superficialmente parecia quebrar as ligações também com outra fonte de legitimidade. Abrahamsson e Nilsson afirmam que :

“ Apôs a independência, o exercício religioso foi declarado como actividade privada cuja prática só deveria ter lugar no âmbito familiar. As práticas religiosas públicas em diferentes comunidades religiosas deixaram de ser possíveis. No entanto a prática religiosa tradicional não foi definida como religião com o mesmo significado que as outras . As suas cerimónias com ligação a fertilidade da terra e pluviosidade eram consideradas como superstição. Visto que a superstição era inimiga declarada da modernização e do racionalismo devia ser combatida” (Abrahamsson e Nilsson 1998:255).

Para a população local, no entanto, não desapareceu a legitimidade do papel do régulo como portador de conhecimentos sobre as tradições locais. Essa legitimidade continuou a existir como uma corrente forte em todas as camadas populacionais.

O facto de a FRELIMO ter ignorado a força dessa corrente faz com que se tenha perdido a possibilidade de ligação com os princípios da legitimidade das decisões políticas sobre a organização da produção de distribuição dos recursos sociais, que guiavam a população no seu julgamento sobre as medidas introduzidas pelo novo poder estatal.

Tal como afirma Weimer (2002:55-80) “as guerras civis, rebeliões e revoluções podem ser interpretadas como manifestações de uma parte significativa da população contra as instituições estabelecidas”, porque não reconhece a legitimidade e/ou a eficácia de algumas ou de todas as instituições do Estado. A rebeldia contra as instituições do Estado é um dos factores que explica que a guerra se tenha estendido a todo território apesar da redução significativa do apoio material externo que a RENAMO sofreu na segunda metade da década de 80.

Finalmente podemos concluir que as opções político-económicas da FRELIMO, logo após a Independência tiveram a curto e médio prazo efeitos políticos, económicos e sobretudo sociais adversos na medida em que remeteram as populacoes do Estado a uma situação de insegurança humana generalizada. Tal insegurança resultou principalmente das políticas de exclusão e privações que predominavam o modelo de governação adoptado. Longe de incluir a governação da FRELIMO excluía política, económica, cultural e socialmente diversos extractos da sociedade na medida em que negava as diversas especificidades e privava as populações dos seus direitos políticos, culturais e económicos. Este modelo longe de levar ao desenvolvimento remetia-as cada vez maior pobreza, contraria a expectativa de bem estar e liberdades como resultado da independência.
A exclusão a nível interno, resultou no descontentamento de lideranças o que facilitou a penetração externa do apartheid para a desestabilizacao remetendo a população e o Estado a uma situação de insegurança, resultante da guerra de desestabilizacao, que para alem das mortes destruiu as infraestruturas tidas como fundamentais para o desenvolvimento do pais.
[1] Uso sistemático de violência para forçar mudanças sociais políticas e legais .
[2] A derrota do capitalismo na África Austral significava para a África do Sul e para a Rodésia a queda dos respectivos regimes de minoria branca vigentes.

[3] A ocidente estava a Namíbia, ocupada pela África do Sul que por sua vez fazia fronteira com a colónia portuguesa Angola, norte fazia fronteira com a colónia britânica Rodésia e a oriente com a colónia portuguesa Moçambique.

[4] Front Line States – Organização dos Países da Linha da Frente composto por Tanzânia, Moçambique, Zâmbia, Botswana e Angola.
[5] Importa recordar que frequentemente a noção de Segurança Nacional tem sido usada como um princípio autoritário de justificação de práticas políticas
[6] O investigador sul-africano, Deon Geldenhus citado por Hanlon, (1986:29), define a Desestabilização como um método político para obrigar mudanças sem necessariamente ter de derrubar o governo. Isto significa que podem ou não incluir mudanças estruturais mais certamente visam mudanças fundamente ou uma reorientação política, sendo que o objectivo principal do desestabilizador é plenamente político.

[7] Dificilmente conseguiria ir para o ocidente devido aos compromissos Portugal com a OTAN.
[8] Juiz Conselheiro Teodato Hunguana “ Da Liberdade de imprensa e da Eventual Revisão da lei de Imprensa” . comunicação apresentada por ocasião dos 80 anos do jornal notícias, 14/04/2006
[9] Num certo sentido, os grupos dinamizadores foram órgãos revolucionários, que tomaram o poder local quando o Estado colonial deixou de funcionar.

[10] Segundo John Hutchinson e Antony Smith, citados por Malaquias (2003:96) etnia ou grupo étnico é um grupo populacional humano com mitos de ancestral comum, memória histórica partilhada, um ou mais elementos de cultura comum, uma ligação com um território e sentido de solidariedade entre, no mínimo alguns dos seus membros.
Para Magode, etnicidade é um conceito que envolve muitas dimensões, podendo ser um fenómeno de identidade étnica, no sentido em que divide os limites espaciais e sócio culturais de uma comunidade.
Para Magode, a etnicidade é considerada um critério de classificação e de ordenamento de formações sócio-culturais em termos de identidade social e que pode, de igual modo, traduzir-se em reacções de contestação ou reivindicativas de um relacionamento inter-étnico equilibrado num determinado sistema de relações políticas (Ibid.)
Sob esta perspectiva, Magode considera ainda que a etnicidade recorre a sistemas de símbolos étnicos, traduz um consciência colectiva e serve de instrumento de diferenciação de posicionamentos políticos com consequências inevitáveis no relacionamento inter-étnico.

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