Wednesday, November 26, 2008

COMEÇA AGORA A ERA PÓS-RACIAL

Arão Dava

Começa agora a era pós-racial?A vitória de Obama deve ser percebida como um sinal, um marco histórico de que realmente é possivel o sonho de Martin Luther King. Naõ significa isto dizer que a partir de 4 de Novembro brancos e pretos serão iguais, e que a discrminação racial acabou, mas significa uma clara demostração de que os pretos tem as mesmas ocapacidades que os brancos.O que mais me marcou no discurso de Obama foi a afirmação de que a sua vitória ..." É a resposta de jovens e idosos, ricos e pobres, democratas e republicanos, negros, brancos, hispânicos, asiáticos, índios, gays, heterossexuais, deficientes e não-deficientes. Americanos que enviaram uma mensagem ao mundo de que nós nunca fomos somente uma coleção de indivíduos ou uma coleção de Estados vermelhos e azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América."- Obama 4.11.2008.Esta era uma resposta ao sonho de Martin Luther king em 1963, ..."Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.(. ..)E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:"Livre afinal, livre afinal." Martin Luther King 28/08/1963.Confesso que ao ouvir o discursos de Obama também me emocionei. Aconteça o que acontecer, Obama escreveu o nome na história.Agora vamos gerir as expectativas. Agora começa o trabalho.Obama herda um pais na pior situação dos últimos 70 anos, um pais envolvidos em guerras e conflitos diplomáticos prestes a explodir.O meu sonho é que qualquer fracasso de Obama não seja percebido como prova da incapacidade dos negros.O meu sonho é que Obama prove ao mundo que o negro também pode governar.O meu sonho é que a governação de Obama desvitue a teoria de que os governantes africano são prova de incapacidade de incapacidade rácica de governar.Para quem não teve acesso junto estão os discursos Obama e de Martin L. King - encontro neles uma perfeita harmonia.Estes discursos transcendem o racismo e navegam no conceito humanismo. Yes we can

OS PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO EM AFRICA : QUE CONTRIBUTOS PARA SEGURANÇA HUMANA - O CASO DE MOÇAMBIQUE I

Arão Dava

1.INTRODUÇÃO

As independências em África ocorreram numa altura em que o mundo era dominado pelo sistema bipolar que o dividia política, económica, ideológica e militarmente em duas partes:

- Ocidente, capitalista e democrático liberal – liderado pelos EUA e
- Leste, socialista e democracias populares – liderado pela URSS.

Perante este cenário aos países do resto do mundo restava apenas uma destas duas opções, politico-economica, ideologica e militar.

Em África, o efeito da bipolaridade consistiu na luta pelo estabelecimento e expansão de redes de segurança baseadas em aliados estratégicos independentemente do tipo de regime, ou de governo. Como resultado, muitas vezes os regimes africanos, inconscientes da complexidade do problema em que voluntária ou involuntariamente, se envolviam, acabavam por tomar partido de um dos lados no quadro da Guerra Fria[1], sendo deste modo classificados como pró ocidentais ou pró Leste (Zacarias, 1991:143).

Ao adoptar estratégias de desenvolvimento de orientação socialista, logo apôs a sua independência, em 1975, Moçambique criou simultaneamente vulnerabilidade internas devido à sua política de governação baseada na “ditadura do partido único” e tornou-se alvo de ameaças dos regimes minoritários da região. Efectivamente, poucos anos depois da independência, a estratégia adoptada tornou-se pesadelo, porque, por um lado, não consegue responder à expectativa e à euforia populares em relação ao bem estar resultante da independência e, por outro lado, o Estado é alvo da desestabilização, primeiro pelo regime de Ian Smith, da então Rodésia do Sul e depois do apartheid da África do Sul.

A “ditadura do sistema político-económico” fez do Estado um factor de insegurança para o indivíduo, facto que veio a ser agravado pela guerra de desestabilização da RENAMO, resultando assim no medo e nas carências generalizada . Refira-se que o contexto da Guerra Fria contribuiu substancialmente para a adopção do sistema político de orientação socialista em Moçambique e para a desestabilização promovida pelo regime do apartheid da África do Sul.

Com o colapso do bloco leste nos finais da década de 80, a Guerra Fria chega ao fim, dando espaço para a expansão das democracias liberais (como a única ideologia) e para a emergência do new security thinking[2].

No âmbito deste novo contexto internacional e regional, mesmo nos finais da década de 80, Moçambique começa a sofrer transformações económicas e políticas num processo que culmina com a adopção de uma constituição mais liberal em 1990, o que possibilitou o fim da Guerra de desestabilização, com a assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992, e conduziu o país às primeiras eleições Gerais, em 1994, iniciando assim o processo de democratização e por conseguinte aumentando a Segurança Humana.

Para um país, saído de um sistema político-económico centralizado de orientação socialista e da guerra de desestabilização, que durante 16 anos provocou carência e medo generalizados – uma dimensões importante de insegurança humana, o processo de democratização é visto como garante do bem estar político, económico, social e cultural do indivíduo, isto é como factor de segurança humana.

1.1 – PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA

Ao alcançarem as suas independência os Estados africanos foram profundamente marcados pelo ambiente internacional influenciado pela Guerra Fria. No contexto da Guerra Fria e ao ritmo das suas tendências hegemónicas, as duas superpotências foram dando assistência a regimes ou movimentos políticos considerados como aliados, num apoio que se traduzia na provisão desregrada de armas, não tendo em consideração a fragilidade ou a capacidade de sustentação de tais regimes ou movimentos. Esta assistência resultou, na criação de um ambiente propício para o surgimento e manutenção de regimes autoritários, autocráticos e militarizados e de movimentos rebeldes que lutam pela desestabilização dos governos e/ou pelo acesso ao poder. Este facto produziu implicações para a segurança humana devido em muitos casos a eclosão de golpes de estado, conflitos do tipo proxy wars, as privações políticas económicas e sociais que provocaram um clima de insegurança humana generalizada em todo o continente.

Entretanto, na opinião de Picasso (2003: 67), com o fim da Guerra Fria., e queda de URSS, as democracias liberais impõem um paradigma político, económico e social a ser seguido por todos os Estados e regimes como estratégias para o alcance do desenvolvimento e da paz social, isto é da Segurança Humana. De facto, nos países africanos a Democracia e vista como meio para o alcance do desenvolvimento económico e, consequentemente para a melhoria da vida das pessoas, na medida em que, pretensamente, um governo democrático, está mais vocacionado para procurar o bem comum da sociedade, isto é a Segurança Humana (ibid.).

Volvidos mais de quinze anos depois dos inicio do processo de democratização em África, importa perceber que contributos este processo está a dar para a segurança humana, sabido que os velhos actores ( partidos de vanguarda e ex-rebeldes ) e novos actores ( novos partidos, movimentos sociais, meios de comunicação ) e novos mas velhos problemas ( pobreza, fome, HIV-SIDA, corrupção[3], analfabetismo, tribalismos, criminalidade) interagem entre si neste novo contexto.

1.2 - OBJECTIVOS

O presente trabalho é desenvolvido com o objectivo geral de:

- Perceber o processo de democratização e o seu contributo para a segurança humana nos Estados africanos tendo Moçambique como caso impirico.

Sob ponto de vista específico pretendemos:
1. Identificar os factores de insegurança humana em Moçambique
2. Averiguar ate que ponto o processo de democratização contribui para a Segurança Humana em Moçambique.
3. Identificar os desafios e os dilemas do processo de democratização para uma maior segurança humana em Moçambique.

Provocar um debate, fundamentalmente sobre a segurança humana e sobre a democratização.

1.3 – HIPÓTESE

Como hipótese de trabalho temos as seguintes:

1. – A Guerra Fria e o contexto geopolítico regional, as opções política do estado e o conflito de desestabilização tiveram reflexos negativos na segurança humana em Moçambique;
2. – O Fim da Guerra Fria e o processo de democratização contribuíram para a remoção de factores internos e externos da insegurança humana em Moçambique.
3. – A consolidação da democracia é uma condição relevante para a promoção da segurança humana em Moçambique.

1.4 - QUESTÕES DE PESQUISA

Tendo em conta o caso alguns pontos de partida como :

1. Que factores terão contribuído para a insegurança humana em Moçambique
2. Que factores podem levar a segurança humana em Moçambique
3. Que contributo é que o processo de democratização pode dar à segurança humana em Moçambique

1.5 - METODOLOGIA E TECNICAS UTILIZADAS

Para a realização do presente trabalho recorremos aos métodos histórico e comparativo.

O Histórico, que nos possibilita perceber, por um lado, as condições históricas que levaram o país a uma situação de insegurança generalizada, e por outro lado, o processo e os desafios actuais da democratização.

O comparativo permite nos por um lado, fazer uma comparação temporal, isto é antes e depois da Guerra Fria e por outro lado entre Moçambique e os outros países africanos.

As técnicas usadas são: a documental e a entrevista.
A Documental, que consiste na consulta de obras e documentos relevantes seja nas bibliotecas ou na Internet.
A Entrevista semi-estruturada, que consiste na conversa verbal com individualidades que tenham conhecimentos relevantes sobre o tema do trabalho e permite a flexibilidade e adaptação aos momentos e situações.

O presente trabalho não é um documento acabado´. É apenas uma provocação para um debate.


[1] A Guerra-fria dividiu o mundo em dois blocos político militares e económicos antagónicos liderados por duas super potencias mundiais designadamente, os Estados Unidos da América e a União Soviética.

[2] Que na abordagem de segurança para além dos aspectos "Estato-Centricos" e militares, abrange novos aspectos como a fome, a seca, as pestes, liberdades e direitos politicos, as epidemias, a economia, o ambiente, tipo de governo, etc.
[3] Quando falamos da corrupção estamos a usar o conceito de Nye (1978) segundo o qual corrupção é um comportamento desviante dos deveres formais e públicos para obtenção de ganhos privados ou sejam pessoais, familiares ou de grupo privado.

CAPITULO – 1: ABORDAGEM TEÓRICO-CONCEPTUAL DO TEMA

Os processos de democratização em Africa : Que contributos para a segurança humana - o caso de Moçambique

Arão Dava

1.1 - O PONTO DE PARTIDA: AS TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS EM CONFRONTO

A disciplina de Relações Internacionais envolve o estudo de um grande número de factos sobre o sistema internacional. Entretanto estes factos, são melhor percebidos somente, “quando existe um enquadramento onde coloca-los, e é a teoria que proporciona tal enquadramento” (Woods, 1996: 9).

Segundo Andrew Ross (1999 :45) [1] , a teoria é um requisito prévio para a acção. Quer de maneira consciente quer inconsciente, são as ideias a respeito da forma em que funciona o mundo e as expectativas sobre os resultados que se buscam, que modelam as acções. A acção efectiva requer entendimento e não há entendimento sem teoria. A teoria está incorporada nos conceitos, nos enquadramentos analíticos e nos enfoques utilizados pelos estrategas e planificadores de forças. As decisões que tomam tem sua base em hipóteses sobre acontecimentos que requerem resposta, aos problemas para os quais se deve estar preparado e a medida em que pode ser moldado o mundo do futuro.

As ideias sobre as quais se baseiam as acções dos decision-makers responsáveis pelas interacções dos seus países com o resto do mundo, tem suas raízes em tradições intelectuais algumas vezes opostas que dão sustento às análises das questões de política, economia e segurança internacional.

Nas Relações Internacionais a procura do melhor campo teórico conceptual com vista a obtenção das mais confiáveis análises da realidade tem ocasionado grande disputa intelectual. Inúmeras são as propostas teóricas que vem sendo apresentadas, que se torna difícil classifica-las. A maneira que os académicos dedicados ao estudo da evolução teórica das Relações internacionais encontram para organizar esse campo teórico foi utilizar o conceito paradigma[2], tomando-o de empréstimo ao filósofo, Thomas Khun (1982).

De acordo com Ross (1999:46) o conceito de paradigma tem servido para classificar as teorias segundo o seu vínculo a determinados modos de perceber a dinâmica do meio internacional. Este conceito não é contudo suficiente para resolver o problema de “mapeamento” do campo teórico de relações internacionais.

Se, por um lado, o conceito de paradigma ajuda, por outro dificulta uma vez que há alguma divergência quanto aos próprios paradigmas. Só para citar alguns exemplos dessas divergências, Ole Waever[3] considera a existência de três paradigmas: Realismo, Pluralismo ou interdependência e Marxismo ou Radicalismo enquanto que Graham Evans e Jeffrey Newman[4] consideram sete paradigmas, designadamente, Realismo, Behaviorismo, Neo-liberalismo; Teoria do Sistema Mundial; Teoria Crítica Pós Modernista, Neo-realismo e Neo-liberalismo (Halliday, 1999).

Uma vez que dentre as várias classificações alguns paradigmas se sobrepõem como consensuais poderemos considerar que o estudo das Relações Internacionais fundamenta-se em três principais paradigmas, nomeadamente: Realismo, Pluralismo ou Liberalismo e Estruturalismo, Globalismo ou Marxismo.

1.2 – A PAZ E SEGURANÇA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: O DEBATE TEÓRICO

1.2.1 - O REALISMO

O Realismo moderno surge em reacção ao Idealismo[5]. Tal como os Idealistas, os Realistas afirmam que a Guerra é o principal factor de insegurança internacional. Para os Realistas a paz significa “ ausência da guerra”, isto é, segurança face a ameaça representada pelo factor guerra. Assim o Estado alcança a paz se tiver poder suficiente para se impor perante os outros, num cenário que leva ao equilíbrio de poder (David, 2000:33).

Para Fred Halliday a primeira grande obra do Realismo moderno foi escrita pelo académico E.H.Carr e intitula-se “ A Crise dos 20 anos” referindo-se ao período entre as duas Guerras Mundiais. Tal como afirma este autor, Carr era da opinião que a II Guerra Mundial bem como todas as Guerras só poderiam ter sido evitadas se as democracias ocidentais estivessem dispostas a se contrapor militarmente ao expansionismo dos Estados fascistas (Halliday, 1999:231). Halliday, acrescenta que a Carr juntaram-se vários académicos nos Estados Unidos, tal é o caso de Hans Morganthau (tido como pai do realismo), Henry Kinssiger e Keneth Waltz[6] e Martin Wight.

De acordo com David (2000: 33), os Realistas defendem que o mecanismo de Balanço de Poder é fundamental para a Paz e Segurança Internacionais e para funcionamento e sobrevivência do Sistema Internacional enquanto sistema composto por Estados Independentes. Para eles, só através do funcionamento deste mecanismo é que se poderia evitar o desenvolvimento de um Estado império Mundial.

A validade dos pressupostos do paradigma realista parecia confirmar-se com as mudanças ocorridas após a Segunda Guerra Mundial. Com efeito,

“a formação de dois blocos de poder antagónicos e a rivalidade entre as duas super potências hegemónicas (União Soviética e Estados Unidos da América) nos seus respectivos blocos, ameaçando a qualquer momento iniciar uma Guerra atómica não davam qualquer margem de dúvida de que as possibilidades de se alcançar a paz mundial tal como pensavam os Idealistas era impossível e não passava de uma ilusão” (Ross op. cit.).

Este paradigma tem como premissas básicas as seguintes:

1. Os Estados são soberanos, independentes e não reconhecem uma autoridade superior,
2. Já que são soberanos operam num sistema autárquico,
3. Já que o sistema e anárquico prevalece o sentimento de insegurança
4. Dada a competição entre os Estados e a sua busca por segurança, isso resulta tão-somente em sentimentos de insegurança por parte de outros Estados, e portanto, a Guerra é uma característica inevitável do Sistema Internacional,
5. Dada a existência de conflito no Sistema Internacional, o poderio militar é um pré-requisito para a sobrevivência de um Estado,
6. A moralidade não desempenha nenhum papel no sistema internacional, o objectivo principal de um governo é assegurar a sobrevivência do Estado que governa.

Em resumo, o realismo sustenta que a função de um Estado é buscar segurança por meio do uso da força, para o que deve ter poder e recursos militares, seja para se sentir seguro seja para a defesa. Só desta forma mantém a paz.

1.2.2 – O PLURALISMO

O Pluralismo tem origem especialmente nos Estados Unidos da América e na Europa Ocidental, na década de 70 e surge como uma corrente intelectual que desafia o Realismo impondo-se como alternativa de análise às questões internacionais por parte dos académicos da disciplina (Halliday, 1999:28).

Segundo Ross (2000) esta forma de pensar remonta de épocas muito anteriores a década de 70 do século passado. De facto pensadores clássicos como Platão (1993), Aristóteles (1985), Grotius (1925 [1625]), Locke (1998 [1690]), Montesquieu (1993) Rousseau (1983), Kant(s.d), Benthan (1979) desenvolveram as bases do pensamento pluralista. Como defensores deste paradigma na área económica destacam-se nomes de pensadores como Adam Smith (1983) e David Ricardo (1988). Entre os contemporâneos deste paradigma encontramos Grahan Allisson (1999), Francis Fukuyama [(1989)(1992)], Robert Keohane (1986) Joseph Nye (1990) e John Ruggie (1996).

Apesar do paradigma Realista manter-se dominante, no início da década de 70 do Século passado, os académicos Americanos Robert Keohane e Joseph Nye (1971 e 1977[7] citados por Halliday, 1999) trabalharam conjuntamente na Universidade de Havard, desenvolvendo duas importantes teorias. A teoria da Interdependência e do Transnacionalismo que conjuntamente perfazem as bases do Paradigma Pluralista, como um quadro alternativo para os académicos da disciplina (Halliday, 1999:28)

As reflexões destes dois autores tinham como base empírica, algumas mudanças significativas que ocorriam no sistema internacional, dentre as quais, o abandono do padrão ouro de Bretton Woods; o primeiro choque de petróleo; o fim da Guerra do Vietname; e o início das tensões comerciais entre os Estados Unidos e o Japão. Devido ao impacto destes acontecimentos detonadores da perda relativa de poder por parte dos Estados Unidos e simultaneamente a importância crescente dos factores económicos nas Relações Internacionais, eles concluem que a economia internacional havia evoluído a tal ponto que o poder era exercido também mediante mecanismos financeiros e comerciais (Ibid.)

Os principais pressupostos do pluralismo são as seguintes :
1 Ainda que no sistema internacional não exista uma autoridade política que imponha ordem, resolva conflitos e exija decisões é possível a ordem uma vez que os Estados cooperam dentro de tal anarquia.
2 O Estado está perdendo a sua posição dominante no Sistema Internacional a favor de outros agentes não estatais.
3 O poder militar enquanto instrumento de política externa está perdendo lugar a favor de outros económicos.
4 A linha divisória entre a esfera doméstica e a esfera internacional está desaparecendo, isto é, o Estado no mundo contemporânea está perdendo o seu controlo absoluto sobre assuntos internos, para além de que na esfera externa vem perdendo a sua autonomia (Halliday, 1999:59).

O pluralismo tem em conta a interacção de vários actores no processo de tomada de decisão. Esta interacção só é possível em Estados democráticos onde diferentes actores sociais e económicos (os partidos políticos, as classes, os grupos de interesse, os meios e os indivíduos) procuram influir sobre as decisões do governo que se baseiam em interesses de vários actores ou seja em vários assuntos estratégicos intra-nacionais diferentes, isto é, as decisões são tomadas mediante negociações políticas (ibid. :61).

Ross (op.cit) acrescenta que nos Estados Democráticos os actores se enfrentam, concorrem, negoceiam e transigem entre si e com actores do governo procurando incidir sobre as acções do governo.

O pluralismo reconhece que actores públicos e privados – organizações, burocracia e funcionários governamentais e partidos políticos, classes, grupos de interesses, os meios e os indivíduos — têm seus próprios interesses e objectivos. Estes interesses e objectivos por vezes entram em conflito e são com frequência contraditórios. Na verdade nem o Estado nem o governo são entidades abstractas, o governo é formado por organizações burocracia, legislaturas comissões legislativas e indivíduos. Os Estados quando actuam reflectem o interesse das organizações, as burocracias e os indivíduos.

As democracias são igualmente apontadas como fonte de paz. De acordo com Baylis e Smith, os valores democráticos, embora não eliminem totalmente as fontes de guerra contribuem para a construção e manutenção de um mundo mais pacífico, isto porque, a democracia é a única forma de organização política que garante o respeito pela dignidade humana; que permite o progresso acelerado e global do povo que consente a alegria de viver em sociedade, sendo que o único e insubstituível guardião da democracia é o povo que exige os factos (Baylis e Smith, 2001:262-263).

A democracia repousa na igualdade e na liberdade de todos os cidadãos. Uma liberdade mais ampla é garantida nos regimes democráticos que nos regimes não democráticos. Para os pluralistas o Estado democrático é aquele que cultiva ideais liberais, onde o liberalismo é a ideologia dominante e os cidadãos tem influência sobre o processo de tomada de decisões, particularmente as decisões sobre a guerra ( Owen, 1998:137-151).

Deste modo no quadro do pluralismo (liberalismo) e para sustentarmos a abordagem em torno do tema “ O processo de democratização como contributo para a segurança humana” iremos cruzar as teorias da Paz Democrática e da Privação Relativa de Ted Gurr (1970) e das Necessidades Humanas de John Burton (1990).

Por um lado, para sustentarmos a nossa abordagem de Democratização iremos nos socorrer da Teoria da Paz Democrática defende os seguintes pressupostos :

1 - A propagação de valores democráticos reduz a propensão de conflitos e favorece a uma solução pacífica de diferendos, devidos a predominância de uma cultura liberal de compromisso. Assim, apontam para a necessidade de promoção de democracias como forma de garantir a paz e segurança dos Estados. ( David, 2000: 36-37);
2 - Consideram que as democracias não lutam entre si;
3 - Para além do diálogo, as democracias não tem outros meios de resolver conflitos;
4 - Afirmam que existem constrangimentos normativos e estruturais que desencorajam a luta entre democracias (Owen, 1998:40-145)

Por outro lado para sustentar a nossa abordagem de segurança humana iremos recorrer as teorias de Privação Relativa de Ted Gurr (1970) e das Necessidades Humanas de John Burton (1990).

A Teoria da Privação Relativa - Na opinião de Leon Festinger a privação relativa constitui o fosso entre, por um lado, o que consideramos como sendo nosso direito ter, fazer, ser e por outro lado a nossa percepção sobre aquilo que outras pessoas, grupos de pessoas ou instituições nos permitem em termos de recursos e capacidades para satisfazer aquilo que assumimos como sendo nosso direito (Festinger, 1962 :262)

Assim a privação relativa consiste numa discrepância entre expectativas do homem e as suas capacidades. As expectativas são condições de vida a que as pessoas pensam ter direito. As capacidades são bens e condições que as pessoas pensam terem a capacidade de poder atingir e manter, dados os meios disponíveis para eles (Gurr, 1970 :13).

Anders Nilsson distingue três aspectos fundamentais da teoria da Privação Relativa de Ted Gurr, que importa reter :

- A privação relativa lida com a percepção das pessoas em relação a sua própria situação, suas expectativas, e capacidades. Por esta razão, a privação relativa tem como seu ponto de referência as expectativas, as quais não é fácil descrever em termos quantitativos, particularmente no que toca a questões imateriais, como crenças, ideologia, afirmação social, cultural, religiosa, etc. Nem a percepção da capacidade permitida é fácil de identificar quantitativamente e menos ainda a dimensão da dissonância, ou privação relativa.
- Quando falamos de privação relativa é pertinente enfatizar a relatividade embuida no conceito. Assim notaremos que a privação relativa em relação a expectativa materiais também pode ser intensa para pessoas que vivem um nível material relativamente alto, completamente desligadas de quaisquer necessidades provenientes da proximidade a pobreza absoluta. Deste modo poderemos facilmente aplicar o conceito na analise da frustração de grupos de elite na sociedade.
- As expectativas referem-se a posições justificáveis, no sentido de que as pessoas acreditam que tem direito a ver realizadas as suas expectativas independentemente das suas posições sociais, sejam elas pobres, camponeses, ou elites alienadas. De notar que não é a falta absoluta de satisfação das expectativas que é o problema, mas o sentimento de não ser permitido recurso ou possibilidade para a satisfação (Nilsson, 172-173)

Com esta teoria, Gurr criou a possibilidade para a percepção fundamental da potencialidade da violência colectiva. Aliás, na sua opinião, “ o sentimento provocado pelo percepção de privação relativa é a conclusão básica, instigando os participantes da violência colectiva” (Gurr, 1970:13).

Teoria das necessidades básicas - Na opinião John Burton qualquer resolução de conflitos deve basear-se naquilo que, terá contribuído para o seu surgimento de modo a evitar que o conflito ressuscite e a impedir o surgimento de novos conflitos a partir das circunstancia inalteradas. Assim Burton identificou a teoria das Necessidades Humanas que tem os seus alicerces na suposição de que os seres humanos tem certas necessidades básicas que requerem satisfação, e que não podem ser suprimidas nem pela repressão nem pela socialização (Burton 1990:36).

De acordo com Burton (ibid:37) nenhuma socialização pode ser mantida por muito tempo forçando as pessoas a um comportamento que perverte ou destroi a sua identidade e os priva das suas necessidades básicas, que baseiam-se fundamentalmente em três categorias : valores, interesses e necessidades :

- Necessidades – As necessidades humanas não são negociáveis e não podem ser separadas da existência humana. Ás necessidades, constituem o conjunto de valores imprescindíveis para a sobrevivência das pessoas e unidades políticas, (meio ambiente, bem-estar social, alimentação, vestuário, etc.). Na perspectiva de conflito, as necessidades são satisfeitas em função dos meios disponíveis. Quando não são satisfeitas dentro do quadro normativo social, há propensão para os indivíduos agirem contrariamente a lei, ou seja cometerem crimes que podem ser reprimidos pelas instituições de direito.
As necessidades não são negociáveis, uma vez que são inerentes a sobrevivência e ao desenvolvimento das pessoas ou entidades públicas ou privadas. A sua não satisfação conduz a comportamentos não compatíveis os sistemas sociais vigentes.
- Valores – São as ideias, hábitos, costumes e crenças que caracterizam uma determinada comunidade social. Os valores podem ser linguisticos, religiosos, de classe, étnicas, entre outras que distinguem cultura e grupos de identidade. Os valores distinguem-se das necessidades pelo facto de estas serem universais e primordiais (talvez genéticas). Em situações de opressão, discriminação, privação e isolamento, a defesa de valores é importante para a identidade e segurança pessoal. Neste sentido eles afectas as necessidades e podem ser confundidos com elas. A preservação de valores é a razão de comportamentos defensivos e agressivos. A persecução das necessidades individuais é a razão para a formação de grupos de identidade através dos quais os indivíduos operam quando perseguem um maior ego, bem como segurança e identidade cultural.
- Interesses - Referem-se a tudo aquilo que se afigura como sendo de extrema importância para a sobrevivência de uma determinada unidade política ou para os indivíduos. Eles são de caracter transitório, constituem aspirações ocupacionais, sociais, políticas ou económicas de um indivíduo ou grupo de indivíduos. Os interesses são passíveis de alteração ao longo do tempo, são mais evidentes em relação a bens materiais e são negociáveis. Quanto a tipologia, os interesses podem individuais, colectivos, de grupos sociais, universais - humanitários e nacionais. Podem ainda dividir-se quanto a importância em vitais, secundários; quanto a duração em permanentes e variáveis e quanto ao caracter em gerais, específicos, comuns, comuns, complementares e conflituosos (Burton, 1990, 36-41).

Na opinião de Nilsson, a diferença entre as três categorias é que elas tem categorias e estabilidade diferentes. Interesses é uma categoria transitória, que muda com frequência. Valores estão ligados a cultura, sendo por isso mais estáveis ao longo do tempo. As necessidades humanas são consideradas universais, sem limites no tempo e no espaço, e constituindo uma parte intrínseca da natureza humana (Nilsson, 246)

O presente trabalho terá como suporte o paradigma pluralista. Para fundamentar os nossos argumentos em relação ao processo de democratização iremos recorrer as Teoria da Paz democrática que estabelece uma relação de causa efeito entre a democracia e a segurança, defendendo que quanto mais democrático for o mundo mais pacífico e seguro será, sendo que o mesmo se aplica em relação aos Estados internamente. Por outro lado, as nossas argumentações em relação a segurança e insegurança serão fundamentadas pelas teorias da Privação Relativa e das Necessidades Humanas básicas.

1.3 – ENQUADRAMENTO DOS CONCEITOS CHAVE NO CONTEXTO AFRICANO (MOÇAMBICANO)

1.3.1 – A DEMOCRACIA

O conceito Democracia é dinâmico e tem estado a evoluir ao longo dos tempos. Por exemplo, para os atenienses “democracia” referia-se a certos tipos de igualdades vistas como características desejáveis para o seu sistema político: a igualdade de todos os cidadãos, a igualdade de direitos para falar na Assembleia Directiva que governa e a igualdade perante a lei. A democracia no sentido etimológico da palavra significa “o governo do povo, o governo da maioria” (Rosenfield, 1984:7).

De acordo com Mark de Tollenaere (2002:227-251), nos últimos 50 anos desenvolveu-se um grande número de definições e teorias sobre democracia, podendo ser agrupadas em três categorias :

Primeiro, a categoria dos minimalistas que consideram que é suficiente que um país tenha eleições competitivas e regulares para ser chamado democracia, (incluímos aqui Schupenter e Huntigton). Só para citar um exemplo, Schumpeter (1950[8], citado por Lalá e Ostheimer, 2004:11) considera que as eleições processuais são a essência do sistema democrático.

Segundo, a categoria dos que incluem as definições técnico institucionais de democracia que exigem muito mais do que a mera realização de eleições regulares competitivas. Também consideram a existência de instituições que garantam ao cidadão, os direitos e liberdades tradicionais individuais e colectivas que imponham controles múltiplos e mútuos. Nesta categoria encontramos Robert Dahl (1971)[9] e Larry Diamond (1990)[10] (Lijphart, 1998:5).

Só para ilustrar esta categoria tomemos o exemplo de Dahl (citado por Lijphart : ibid.) que considera que uma democracia razoavelmente receptiva pode existir se pelo menos estiverem presentes oito garantias institucionais :

1. - liberdade de formar e associar-se em organizações;
2. - liberdade de expressão;
3. - direito de voto;
4. - acesso a cargos públicos;
5. - direito dos líderes políticos competirem para os votos, isto é, a possibilidade de líderes políticos competirem através da votação;
6. - fontes alternativas de informação;
7. - eleições livres e justas;
8. - instituições para fazer as políticas do governo dependerem de votos e outras expressões de preferência.

A terceira categoria é dos que fazem uma aproximação mais filosófica onde a democracia é considerada uma sensibilidade comportamental, sem no entanto haver prescrição dos atributos institucionais fundamentais para a democracia.

Brazão Mazula (1995:73) é um exemplo ao considerar que a democracia deve proporcionar uma capacidade e oportunidade de convivência social política e económica, na diversidade de ideias, culturas e opiniões para um desenvolvimento real em cada tempo e lugar.

A esta última categoria incluímos igualmente Baptista Lundin (1996: 107-169), que considera que o conceito Democracia e a sua prática é um produto histórico que segue normas e regras diferentes em universos socioculturais diferentes, o que confere quase sempre, o mesmo aspecto de relativismo sócio cultural da democracia.

Para a nossa abordagem iremos recorrer a terceira das três categoria de democracia propostas por Mark de Tollenaere uma vez que esta nos permitirá melhor definir democracia no contexto moçambicano.

Assim sendo, tendo em conta o processo histórico, a democracia para a presente abordagem, irá significar, o respeito pelas normas e valores democráticos – o que requer a aceitação de que todos os jogadores aderirão as mesmas regras, que a responsabilidade não é encarada como um fardo, mas um dever, e que a política não se exerce apenas sobre o poder, mas também sobre boas gestão de bens públicos. Que a política é essencialmente sobre convicções genuínas e não apenas palavreado indiferente aos princípios democráticos. (Tollenaere ,2002:227-251).

1.3.2 - DEMOCRATIZAÇÃO

O Dicionário de Ciências Sociais (1986:318) refere que a democratização é a superação das tensões e dos conflitos políticos, económicos e sociais mediante a máxima participação autónoma do povo em todas as actividades da comunidade política.

Para Pasquino, (2002: 320) a democratização resulta da conjugação de dois processos:

1. A liberalização – que consiste no processo de alargamento das oportunidades de contestação que conduz os regimes fechados na direcção das oligarquias concorrenciais e[11],
2. A inclusão – que consiste no processo de alargamento das actividades de participação, que origina regimes nos quais todos ou quase todos tem a possibilidade de participar, mas que não são necessariamente concorrenciais, já que o poder continuara a ser exercido pela elite dominante.

Assim podemos aferir que a democratização é um processo que, em geral se refere a transição de qualquer outro regime para o democrático. De acordo com Lalá e Ostheimer (2004:49) na conceitualização de democracia e na distinção entre uma democracia eleitoral (caso do Zimbabwe) e uma democracia liberal (caso da França), é necessário que se realize, em primeira instancia, a distinção entre o processo de transição do autoritarismo para a instalação de um novo governo democraticamente eleito, e posteriormente o da transição para uma democracia consolidada e institucionalizada.

A democratização como processo, começa pela remoção dos factores inibidores da democracia, passa pela realização de eleições (democracia eleitoral) e caminha para a consolidação (democracia consolidada).

Segundo Lalá e Ostheimer (2004:49), a consolidação democrática, refere-se ao seu carácter processual e qualitativo, no sentido do alargamento e aprofundamento das estruturas democráticas e mudança de uma mera democracia eleitoral para uma democracia liberal.

Alias, Baptista Lundin (1996:121) afirma que os sistemas políticos que hoje existem no mundo aceites como democráticos, mostram claramente pela sua diversidade a validade de que a democracia como um produto histórico evolui consoante as condições dos espaços em que é implementada, atendendo as particularidades sóciohistóricas desses espaços.

Raymond D. Gastil (1987)[12] citado por Sitoe (2006:161) afirma que nas actuais circunstâncias históricas ao contrário do período anterior a segunda metade do Século XX, a implantação da democracia pluripartidária constitui factor base para que o país caminhe rumo a boa governação e ao desenvolvimento.

Por outro lado, Leftwich (1996)[13] citado por Weimer (2002:80) afirma que existe uma correlação significativa entre um Estado Democrático orientado para o desenvolvimento e o próprio desenvolvimento sócio-económico quantitativo e qualitativo neste Estado. Por outras palavras, a democracia é condições sine qua non para o desenvolvimento, entendido como redução da pobreza e da exclusão sócio económico nas várias formas da Segurança Humana.

Tendo em conta os pensamentos de Gastil e de Leftwich poderemos afirmar que a democratização de Moçambique deverá ter em vista o percurso histórico com o objectivo de garantir a manutenção da paz e a liberdade do medo e das carências (RDH, 1994:24). Aliás Sitoe (2006:155-156) afirma que Moçambique é um caso paradigmático onde esta crença (ligação causa efeito democracia segurança humana) foi difundida tanto por actores externos como pelos próprios moçambicanos. Só para citar um exemplo, ( Lalá e Ostheimer: 2003:1) consideram que em Moçambique, como na maior parte dos países africanos, as populações associam a democratização a esperança de ver as suas condições de vida melhoradas.

Para o presente trabalho, define-se democratização como um processo que leva a transição de qualquer regime para o democrático, que mais do que a mera realização de eleições regulares competitivas, caminha para a construção de instituições que garantam ao cidadão, os direitos e liberdades tradicionais individuais e colectivas que imponham controles múltiplos e mútuos, e acima de tudo para uma sensibilidade comportamental, tendo em conta o contexto social, geográfico e histórico. Tal processo consiste no alargamento das oportunidades de contestação através de oligarquias concorrenciais e no alargamento das oportunidades de participação do cidadão na vida política, económica, social e cultural do Estado com o fim último de garantir a liberdade do medo e das carências, paz social efectiva e o desenvolvimento.

1.3.3 - SEGURANÇA NACIONAL

Tradicionalmente o conceito de Segurança sustenta-se na teoria Realista, onde o Estado e o Poder militar constituem aspectos base na abordagem de segurança, isto é, a segurança está associada a capacidade militar do Estado para poder preservar os seus valores principais contra agressões sejam elas externas ou internas.

De acordo com Cepik a segurança é uma condição relativa de protecção na qual se é capaz de neutralizar ameaças discerníveis contra a existência de alguma coisa. As medidas de protecção devem guardar certa proporcionalidade em relação às ameaças, percebidas contra a existência, afectividade, e autonomia de quem ou do que, é protegido. Na ausência de proporcionalidade a segurança, torna-se ela, uma ameaça a afectividade, autonomia e no limite, a própria existência do objecto de protecção (Cepik 2001:3).

Para Cepik (ibid) Segurança Nacional e “ uma condição colectiva de protecção contra os membros de uma sociedade contra ameaças plausíveis à sua sobrevivência e autonomia”. Nesse sentido o termo refere-se a uma dimensão vital da existência de sociedades complexas, delimitas por Estados Nacionais de base territorial.

Estar seguro irá significar viver num Estado que é capaz de neutralizar ameaças vitais através da negociação, da obtenção de informação sobre capacidades e intenções, do uso de medidas extraordinárias e do leque de opções relativas ao emprego do uso de meios de força. A dupla face dessas ameaças, interna e externa, implica algum grau de complementaridade e de integração entre políticas interna e externa, de defesa e de provimento de ordem pública.

A Segurança Nacional como uma condição relativamente desejável a ser obtida através dessas políticas públicas, fornece a principal justificativa para o exercício da soberania e do monopólio Estatal para o uso legítimo dos meios de força. Grande maioria dos ordenamentos constitucionais, reconhece como ameaças :

1. A nível externo - a agressão militar, espionagem, operações encobertas, invasão territorial e o bloqueio económico como ameaças plausíveis e capazes de engendrar respostas dissuasórias proporcionais por parte dos Estados ameaçados.
2. A nível interno - os apoios internos àquelas ameaças externas, acrescidas a noção de subversão[14]. Nas últimas décadas foi acrescentada uma nova categoria de ameaças transaccionais, como o crime organizado e o Narcotráfico (Cepik, 2001:4).

É preciso reconhecer que a noção de Segurança Nacional é problemática, pois tanto o seu significado como as consequências práticas do seu uso estão longe de ser auto evidentes. Muitas vezes o facto de se recorrer frequentemente, a noção de Segurança Nacional como um princípio autoritário de justificação de práticas políticas, torna questionável a sua operacionalização num contexto democrático de governo e de resolução de conflitos nas sociedades contemporâneas.

A segurança humana nas tradições do realismo é comumente assumida como resultante da segurança nacional. No entanto, ainda que reconheçamos que a segurança humana possa resultar da segurança nacional, defendemos para o presente trabalho que a segurança nacional passa necessariamente pela segurança humana esta que, mais do que de factores militares e de poder resulta da interacção de factores económicos, políticos, sociais e culturais.

1.3.4. – A SEGURANÇA HUMANA

O conceito de Segurança Nacional baseia-se na tradição realista, que se limita a segurança do Estado fundamentada em aspectos militares. Esta abordagem que vigorou durante a Guerra Fria foi criticada por perspectivas mais abrangentes e menos Estato-Cêntrica. Assim, desenvolve-se a nova abordagem de Segurança ( new security thinking) que segundo seus protagonistas, responderia, melhor aos dilemas de Segurança depois do conflito bipolar global. Com efeito, desenvolve-se o conceito de Segurança Humana que vai implicar perspectivas muito inovadoras no campo de Segurança, tais como :

1. a ideia de ameaças não militares;
2. a segurança inserida dentro do contexto do desenvolvimento;
3. a redefinição do significado de paz;
4. a questão ordem político-económica doméstica como actor de segurança;.
5. o reconhecimento de um leque de actores não estatais ( Dopke e Maschietto, 2005:13).

Um dos nomes a destacar, entre os inovadores do conceito de Segurança é Barry Buzan. Aliás, Buzan citado por Baylis (2001:255) considera que Segurança constitui a liberdade de ameaças e deve abarcar entre outros factores :

1. - O bem-estar dos indivíduos e colectividades, e
2. - A protecção dos valores centrais para a auto-definição das comunidades.

Buzan (1991:35) é também responsável pela introdução da noção multi-dimensional do conceito segurança identificando cinco dimensões, nomeadamente:

1. Militar, que se refere a dois níveis de interacção, a capacidade defensiva e ofensiva do exército. É preciso reconhecer que em África a capacidade militar dos Estados é muitas vezes usada pelos governos para repelir os seus opositores;
2. Política, que se refere a estabilidade organizacional do Estado e das ideologias que os conferem legitimidade;
3. Económica, diz respeito ao acesso aos recursos, finanças e mercados necessários para prover níveis de vida aceitáveis de bem-estar e Poder do Estado;
4. Social, que se refere a sustentabilidade dos modelos tradicionais de costume, religião, identidade nacional; e
5. Ambiental, que se refere a manutenção da biosfera planetária como base essencial da qual todos os homens dependem.
O destaque nesta inovação vai no entanto para as Nações Unidas, que ao invés de focalizar os Estados, se centra na Segurança da população defendendo e divulgando amplamente a nível internacional o conceito de Segurança Humana (PNUD, 1994).

O conceito de Segurança Humana surge no contexto da pesquisa para a paz, na década de 1980 após o longo período dominado pela Segurança Nacional no âmbito da Guerra Fria.

De facto, durante muito tempo, o conceito Segurança foi construído em função dos potenciais conflitos entre Estados, sendo equiparado aos tratados para as fronteiras dos Estados e a busca de armas para se proteger. No entanto, para a maior parte das pessoas, hoje, o sentimento de insegurança resulta mais das preocupações do quotidiano do que temor de uma guerra mundial.

As discussões sobre a Segurança nos pós Guerra Fria partiam do questionamento do conceito e dos limites estabelecidos para o seu campo de estudo. A questão central que se coloca e a quem e ao que a Segurança se refere. A evolução do termo Segurança pode ser descrita em três eixos paralelos :

1. A definição do objecto referencial, ou seja o que deve ser protegido,
2. A definição do que configura ameaça e
3. Como Estudar Segurança

Segundo Walker (1997:65) o fim Guerra Fria permitiu questionar a primazia do Estado em duas direcções : o que significa estar seguro e o que deve ser protegido. A simples sobrevivência física não é suficiente, dado que expressões de Poder e ameaça não decorrem apenas de questões militares. Pode-se então definir Segurança em relação a processos sociais, culturais, económicos ecológicos, assim como ameaças geopolíticas.

Um segundo conjunto de criticas refere-se a definição de qual o objecto de segurança, buscando uma perspectiva mais inclusiva da Segurança dos indivíduos e não só dos cidadãos em particular (Walker : ibid). Deste modo, o objecto de segurança não se pode resumir ao Estado, devendo estender se a outros actores como os indivíduos, as minorias étnicas, a biosfera, a humanidade como um todo e a nação. Assim para alem das questões relacionadas a ameaça ou uso da forca entre actores políticos deverão entrar na agenda outras possíveis ameaças, como o colapso económico e financeiro, a degradação social e ambiental, o trafico de drogas, o crime organizado, as pandemias, os problemas de ordem publica, a violência interna, a corrupção, entre outros.

A Comissão de Segurança Humana das Nações Unidas define Segurança Humana como a protecção das liberdades vitais e das pessoas expostas a ameaças e acertas situações, reforçando seus aspectos fortes e suas aspirações, alem de criar sistemas (políticos, sociais, económicos, ambientais, militares e culturais) que concedam as pessoas os elementos básicos de sobrevivência, dignidade e meios de vida[15].

Para o PNUD (1994) a essência da Insegurança Humana é a vulnerabilidade dai que seja necessário estabelecer um vínculo estreito entre o desenvolvimento e a segurança.

Para o Secretario Geral da Nações Unidas, Kofi Anan, :

“a noção de Segurança Humana no seu sentido mais amplo, envolve muito mais do que ausência de conflito. Incorpora os temas direitos humanos, boa governação, acesso a educação e a saúde, alem de assegurar que cada indivíduo tenha oportunidades e a capacidade de escolha necessária para desenvolver todo o seu potencial. Cada passo nessa direcção e também passo na direcção da redução da pobreza, ao crescimento económico e a prevenção de conflitos. A liberdade de não ter de enfrentar privações e medo e a liberdade de as gerações futuras herdarem um ambiente natural e saudável são as dimensões que, de forma inter relacionada, compõem a segurança humana e a segurança nacional” .[16]

O Relatório de Desenvolvimento Humano entende por Segurança Humana, a liberdade do medo e das carências, sendo a liberdade do medo obtida através da Paz Social efectiva e a liberdade das carências através do desenvolvimento humano (RDH, 1994:24).

O conceito deve no entanto ser alargado de forma horizontal e vertical tal como defendem Solomon e Cilliers :

1. O alargamento horizontal significa reconhecer que a Segurança Humana depende de factores tais como democracia, direitos humanos, desenvolvimento económico, sustentabilidade do meio ambiente e estabilidade militar.
2. O alargamento vertical significará reconhecer que as pessoas deveriam ser a referência primária da segurança. Neste caminho torna-se possível identificar as ameaças à segurança humana que emergem ao nível sub-nacional, nacional e transnacional (Solomon e Cilliers, 1996:6).

Os pesquisadores canadianos Regeir e Whelan, atribuem três características à segurança humana:

1. É um conceito “holistico” que abrange todas as variadas fontes de insegurança individual incluindo as associadas a pobreza e a violência física.
2. Concentram-se nos direitos humanos dos indivíduos. Na verdade enfatiza o papel do governo como fonte de insegurança para os seus cidadãos.
3. Valoriza a sociedade civil como actor privilegiado, reduzindo assim, de forma implícita, o papel do governo (Regeir e Whelan 2004:4)

A declaração solene da Conferência Sobre Segurança, Estabilidade, Desenvolvimento e Cooperação (UA, 2003) mostra claramente que os lideres africanos definem a segurança como sendo a “ Protecção dos povos e suas comunidades de desastres naturais, ecológicos e degradação ambiental, pobreza e problemas económicos incluindo as condições nas quais os indivíduos possam viver plenamente”. Por outro lado, os líderes africanos incluem na definição de Segurança, a protecção dos princípios da democracia e liberdades fundamentais dos cidadãos, a liberdade do medo, a paz e a estabilidade, o direito de participar plenamente no processo de governação, no desenvolvimento e no acesso aos recursos e na satisfação das necessidades básicas. (OUA, 2000). Estes são precisamente os aspectos fundamentais da Segurança Humana.

No contexto moçambicano a abordagem de Segurança Humana é resultado de factores históricos políticos, sociais e económicos próprios vividos no passado e no presente. A nossa abordagem è normativa caminhando no sentido de consolidação da paz efectiva e promoção de desenvolvimento.
Assim entendemos por Segurança Humana, o bem estar do indivíduo, isto é a liberdade do medo e das carências. Tais liberdades passam necessariamente pela satisfação das necessidades básicas tais como, a garantia das liberdades políticas, económicas, sociais e culturas, das oportunidades de desenvolvimento e da paz tendo o indivíduo como objecto referencial.
[1] “The Theory & Practice of International Relations: Contending Analytical Perspectives,” in Strategy and Force Planning Faculty, ed., Strategy and Force Planning, 2nd ed., Newport: Naval War College Press, 1997, pp. 45 - 62. de Andrew L. Ross retirado da pagina da internet http://www.nwc.navy.mil/nsdm/ da Naval War College intitulada Nacional Security Decision Making no dia 06.05.2005.
[2] O Paradigma, uma palavra de origem grega, paradeima constitui um conjunto de conceitos, bem estabelecidos que reputam verdades como fundamentais, constituindo padrão ou modelo.
[3] WAEVER Ole, The rise of the interparadigme debate in Steve Booth, Khen
[4] EVANS, Graham, NEWMAN, Jeffrey, The penguin Dictionary of International Relations. London. Penguin Books. 1998, p 275
[5] O idealismo não será desenvolvido na presente abordagem na medida em que ele não faz parte do debate teórico que se pretende desenvolver e por outro lado centra-se no factor Guerra tal como o realismo. O idealismo influenciou o período anterior ao em análise, entre 1919 e 1945. Recorremos ao Realismo que influencia a Guerra-fria e o Pluralismo que reage a este paradigma.
[6] Segundo Fred Halliday, ( 1999 : 24) Hans Morganthau escreveu em 1978, Politcs Among Nations, Henry Kissinger, World Restore e Kenneth Waltz Man in the state and War e Martin Wight escreveu Power Polits (1946).
[7] Keohane, R.O. and J.S. Nye (Eds) (1971) Transnational Relations and World Politics. Harvard University Press, Cambridge e Keohane, R.O. and J.S. Nye (1977) Power and Interdependence. Second Edition. Glenview: Scott Foresman.
[8] Schumpeter, JA (1950) capitalism, socialism and democracy, third edition, New York, Harper and Brother Publishers
[9] Dahl, RA, 1971, Polyarchy. Participation and opposition, New Haven London
[10] Diamond, L, 1990, three paradoxes of democracy, Journal of democracy, 1, Summer, 1990, pp 48-60
[11] Forma de governo em que o poder esta nas mãos de um pequeno numero de indivíduos organizados em partido politico. Tal poder e alcançado através da competição (concorrência) em eleições.
[12] Gastil R. D. (1987) Freedom in the world: political Rights and Civil Liberties 1986-1987, Greenwoods Press.
[13] Lefwichi, A 1996 two cheer of democracy. Democracy and developmental state, In Lefwichi, Adain, Ed Democracy and Development. Cambridge Plity Press.
[14] Uso sistemático de violência para forçar mudanças sociais políticas e legais .
[15] Relatório final da Comissão de Segurança Humana www.humansecurity-chs.org/finalreport spanish.html . consultado a 10 Agosto 2004
[16] disponível no www.u.org/news/press/docs/2000/2000050/sgsm7382/doc.html. Abril 2003

CAPITULO 2 – A PROBLEMÁTICA DE SEGURANÇA HUMANA EM ÁFRICA

Os processos de democratização em Africa : Que contributos para a segurança humana - o caso de Moçambique

Arão Dava

2.1 - O ESTADOS AFRICANOS : CARACTERISTICAS GERAIS

Quase a totalidade dos países africanos que emergiram do período pós-colonial apresentam hoje, uma multiplicidade de elementos, entre eles, a diversidade étnica, cultural, linguistica, racial e religiosa. Esta diversidade que resultou da arbitrariedade da partilha e colonização do continente tem efeitos nas caracteristicas actuais dos Estados Africanos.

De acordo com Holst, os Estados são compostos por três componentes basilares : a ideia de Estado, a expressão institucional do Estado e a base física. A Ideia de Estado incluiu, contracto social implícito e o consenso ideológico; a expressão institucional do Estado, inclui o consenso nas regras de jogo político, igual acesso as decisões e alocações, distinção clara entre ganho privado e serviço público, controlo civil sobre os militares e a base física do Estado inclui a soberania efectiva e o consenso nacional e internacional sobre os limites territoriais e a legitimidade do Estado (Holist, 1996 :).

Importa referir, apesar dos Estados serem compostos pelos mesmos componentes, acima refenciados por (Holist, ibid.), eles diferem-se pelos modelos, isto é pelo forma como são constituídos. Assim sendo, tendo em conta os diferentes modelos de Estados, poderemos distinguir : a Nação-Estado e o Estado-Nação. Na Nação-Estado, a nação precede o Estado e tem um papel preponderante na formação deste. O objectivo do Estado neste caso, é de proteger e expressar a nação,. Exemplo claros deste modelo de Estado são os casos da Alemanha na Europa, Swazilândia em África e Japão na Ásia. Por outro lado, temos o Estado-Nação, no qual, o Estado, joga um papel decisivo na criação da Nação. O Estado, gera e propaga elementos culturais uniformes, tais como a língua, costume e lei que com o tempo constituem uma entidade cultural única que se identifica com o Estado. Os Estados Unidos da América são um exemplo ilustrativo deste modelo de Estado.

Na prática, não existem modelos puros, mas misturas de vários modelos com predominância de um dos modelos acima referenciados. O continente africano é predominado por Estados-Nação, isto é, por situações em que os Estados pós-coloniais geraram e propagaram elementos culturais uniformes tais como língua, costume, lei que constituem uma entidade cultural comum dentro das fronteiras arbitrarias constituídas pelas potências colonizadoras.

De acordo com Holist, os Estados africanos como a maior parte dos Estados criados, apôs 1945, possuem características estruturais como:

1. Não existe um contracto social para a sua criação ( do tipo os indivíduos e o Levithan.
2. São bastante influenciados pelo legado colonial
3. Baixo nível de legitimidade vertical (autoridade, reciprocidade, confiança e prestação de contas largamente ausentes) degenerando em estruturas autoritárias;
4. Dificuldade do Estado consolidar-se face a elevada lealdade dos individous aos poderes locais.
5. Fraca legitimidade horizontal, isto é, sem sentido de comunidade entre os seus membros e com o elemento “identidade” é bastante instrumentalizado e manipulado.
6. Alto grau de personalização do Estado, com largas redes patrimoniais em que a base política é constituída pela relação "patrão-cliente" em vez do relacionamento legal-racional ( Holist, 1996).

John Burton defende que nenhuma (construção de Nação ou Estado) pode ter sucesso forçando as pessoas a um comportamento que perverte ou destroi a sua identidade e os priva das suas necessidades como são os casos das identidade e liberdades (Burton, 1990:37). Porem, em Africa, com o advento das independências, dois desafios se colocaram simultaneamente aos novos regimes. Por um lado consolidação do Estado e por outro lado a construção da nação.

O programa de consolidação do Estado e construção da nação que prevaleceu em muito dos Estados africanos consistiu na assumpção de que a diversidade das identidades étnica, cultural, linguistica, racial e religiosa era por inerência negativa e obstrucionista do Estado e que para que o processo de construção da nação decorresse com sucesso era preciso que diferentes identidades fossem erradicadas, submersas ou subordinadas á identidade do grupo ou grupos que dominam o poder do Estado. Esta opção produziu efeitos perversos para a segurança humana, isto porque a partir daqui diferentes grupos identintários ficaram privados da sua liberdade e submetidos as carências. Como consequencia os diferentes grupos identitários que não se identificavam com o poder vigente ficaram submetidos a insegurança humana, chegando algumas vezes a rebelarem-se contra o Estado.

2.2 - A GUERRA FRIA E SUA INFLUÊNCIA PARA A INSEGURAÇA HUMANA NOS ESTADOS AFRICANOS

A questão central da Guerra-fria, era a Segurança militar e “Estato-Centrica” sendo que as armas de destruição em massa constituíam a principal ameaça à Segurança. Enquanto, o equilíbrio global era conseguido a custa destas "super-armas", a nível regional e nacional um quadro diferente caracterizado pelas proxy wars tomava conta do continente (O´Grady:2003)[1].

O países africanos conquistaram as suas independência a partir dos anos 50 numa altura em que o mundo estava dividido em duas partes. As independências eram vistas como saída para problemas, como pobreza, injustiça, exclusão política e violência física e estrutural (política, económica e social) que caracterizavam os países colonizados. No entanto, tal como defende Viera, ao invés de se virarem às suas agendas internas, os Estados Africanos entraram na agenda das rivalidades globais:

“As avaliações das posições assumidas na arena internacional e na política domestica dos países do sul submetiam se a luz dos interesses e rivalidades globais, que pouco ou nada tinham frequentemente a ver com os eventos e motivações concretas” (Viera 1991:73)

A réplica da Guerra Fria em África consistiu na luta pelo estabelecimento e expansão de redes de segurança baseadas em aliados estratégicos independentemente do tipo de regime, ou de governo. Como resultado, muitas vezes os regimes africanos inconscientes da complexidade do problema em que se envolviam involuntária ou voluntariamente acabavam por tomar partido de um dos lados no quadro da Guerra Fria, sendo deste modo classificados como pró ocidentais ou pró Leste (Zacarias, 1991:143).

Com efeito, ao ritmo das suas tendências hegemónicas, as duas super potências foram dando assistência a regimes ou movimentos políticos considerados como aliados, num apoio que se traduzia na provisão desregrada de armas de pequeno porte e armas ligeiras, não tendo em consideração a fragilidade ou a capacidade de sustentação de tais regimes ou movimentos. Esta assistência resultou, por um lado, na criação de um ambiente propicio para o surgimento e manutenção de regimes autoritários, autocráticos e militarizados que se mantiveram no poder a custa de armas e, por outro lado, a emergência de movimentos rebeldes cujo objectivo central era de desestabilizar os governos no poder (Leão, 1994:7[2]).

Picasso (2003:67) afirma que no contexto da Guerra Fria a importância de África provinha do seu valor económico e geostratégico, dai que enquanto os EUA envidavam esforços no sentido de neutralizar a influência soviética, impedir o expansionismo soviético, a URSS por outro lado se preocupava em estender a influência do comunismo em África.

Neste sentido, constatamos que a segurança, nesta altura estava directamente associada à segurança de Estado na dimensão global da Guerra Fria, ficando tudo dependente desta. Nessa época enquanto as manifestações do xadrez da Guerra Fria, foram as proxy wars (Angola e Moçambique) e as respectivas ligações à segurança global por exemplo e as privações políticas económicas e sociais que tiveram o factor homem com o a principal vítima provocaram profunda insegurança humana.

Durante a Guerra Fria os problemas de insegurança humana nos Estados africanos ficaram para o segundo plano. A prioridade era a garantia da segurança nacional, ligada a aspectos militares e aos do Poder do Estado. Esta situação fez com que alguns regimes políticos se tornassem eles mesmos factores de insegurança humana devido ao seu comportamento despótico e devido a dependência de tudo ao contexto de segurança estato-cêntrica.

Assim, a Guerra Fria, conseguiu estabelecer uma estabilidade relativa (apesar de artificial e opressiva) em várias partes de África, uma região considerada pelas duas super potências como tabuleiro ideal para o jogo da Guerra Fria. Tal estabilidade relativa iria desmoronar-se juntamente com o muro de Berlim, em 1989. A fachada da Guerra Fria e da sua estabilidade relativa deixou mais visivel a vulnerábilidade e inseguranca do continente sob ponto de vista humano.

A insegurança humana em África está profundamente ligada a todo o processo de perda e busca de legitimidade por parte dos Estados, numa altura em que graças a Guerra Fria, comportamentos autoritários e violentos sob ponto de vista humano eram tolerados. Assim sob ponto de vista da legitimidade dos governos, poderemos identificar duas fases distintos vividas durante a Guerra Fria em África:

1. – Alto nível de legitimidade dos governos - Este é o primeiro momento que começa com as independências num clima de euforia e esperança, marcado por uma grande adesão popular, e em muitos casos verdadeira participação popular nas decisões políticas do novo país (Cravinho 2004:1)[3]

As novas elites aceitam o poder à data da independência com o argumento, em muitos casos correcto, de representar a vontade popular. A legitimidade política dos novos regimes assentava no protagonismo da luta anti-colonial, quase que de forma exclusiva. Ela não resultava das escolhas dos programas políticos que os novos regimes podiam ter, nem na consagração eleitoral, antes assentava no anti-colonialismo, no mérito de se ter realizado o sonho da libertação do domínio colonial ( Ihonvbere e Mbaku, 1998:1).

Pouco depois das independências assistiu-se a tendência de ocorrência de sistemas de partidos únicos onde a ideia de uma “democracia popular” é expressa através do partido único, o acesso ao poder é feito através da organização partidária e as leis são feitas cumprir através da persuasão ideológica ou coerção. O Partido governamental torna-se num instrumentos de grupos da elite para conter o poder a todo o custo, mostrando-se indisponível a participar em competições políticas sérias e decentes.

A grande fragilidade desta forma de legitimação do poder tornou-se visível em pouco tempo, porque ao fim de alguns anos o brilho de legitimidade anti-colonial tinha esvanecido, tornando-se essencial criar outras formas de legitimação, que poderiam ser produzidas a partir da própria experiência de governação.

Mbaku e Ihonvbere (1998:2) referem que quando tomaram o controle sobre o poder político e económico, as novas elites concentraram os recursos em centros urbanos, marginalizaram as populações rurais, e iniciaram com os processos de despolarização, intimidação e dominação das comunidades. Sendo assim, as populações desses países começaram a encarar a independência e seus líderes como uma espécie de “punição” que trouxe nada senão a miséria, sofrimento, frustração de esperanças, terror, exploração, marginalização e desespero. Assim o novo Estado pós colonial, visto como esperança na garantia de Segurança Humana, torna-se ele mesmo factor de insegurança, isto porque, a forma de governação acaba remetendo as populações a situações de medo e carências generalizadas.

Pela sua própria natureza esta forma original de governação era pouco tolerante, porque resultava de uma associação íntima entre a causa da independência nacional e a chegada ao poder, ou seja, qualquer combate travado contra o regime facilmente poderia ser considerado um crime ou uma contestação à independência e à soberania nacional (Cravinho, 2004 : 2).

2. Baixo nível de legitimidade dos governos - A segunda fase é a da reduzida legitimidade política, na qual os governos, que em muitos casos já são novos governos que tomaram o poder por via de golpes de Estado, governam por todo o lado pela repressão, a coberto das super potências que defendiam também os seus interesses geoestrategicos.

Com efeito verifica-se em África o desenvolvimento de regimes incompetentes e corruptos que sobrevivem com base na repressão e/ou na aplicação de mecanismos de distribuição patrimonial (extremamente corrosivos de qualquer consolidação institucional). Como exemplo desta forma de governar temos Houphoët-Boigny, na Costa do Marfim, Mobuto Sesse Seko, na Republica Democrática do Congo (ex-Zaire) e Nino Vieira da Guine Bissau.

Tanto Houphoët-Boigny, como Mobuto Sesse Seko e Nino Vieira foram durante os anos da Guerra Fria considerados sábios, porque tinham conseguido na sua época manter a paz social através da distribuição criteriosa dos recursos do Estado. No entanto, qualquer análise da total erosão destes Estados hoje, reconhece que as raízes da actual desagregação do estado podem ser encontradas na gestão patrimonial, étnica e regionalista e repressiva destes governantes.

Esta forma de governação atingiu o seu apogeu em meados dos anos oitenta, altura em que, a grande maioria de regimes no continente africano consideravam a participação da população na construção do seu próprio futuro como algo de indesejável e perigoso. (Cravinho, 2004:4).

Nas duas situações acima descritas (alto e baixo nível de legitimidade) constata-se que a segurança humana foi ignorada a favor da do Estado.

A Segurança Humana ( ver ponto 1.3.4) refere-se a liberdade do medo e das carências, alcançáveis respectivamente através da Paz Social efectiva e a liberdade das carência e do desenvolvimento humano sustentável. Tal como tivemos a oportunidade de nos referir anteriormente ela depende de factores como democracia, direitos humanos, desenvolvimento económico, sustentabilidade do meio ambiente, estabilidade militar e reconhecimento que as pessoas são a referência primária da segurança.

Como anteriormente observamos (ver ponto 2.2), a euforia da independência não permitiu que as populações tivessem espaço para optar por programas políticos que pudessem resolver os seu problemas. Num mundo dividido entre o ocidente e o leste, os novos governos pouco experientes acabavam por tomar partido de um dos lados e assim tornando-se alvo do outro. A questão central destes governo era a manutenção no poder com o apoio do seu aliado estratégico e em prejuízo das populações. A manutenção no poder foi feita a custa da repressão e/ou na aplicação de mecanismos de distribuição patrimonial remetendo a população a situações de carências e medo generalizado, isto é a situação de insegurança humana generalizada.

Podemos deste modo aferir que o factor humano que deveria constituir o principal referencial de segurança foi ignorado. Aspectos como democracia, direitos humanos, desenvolvimento económico e estabilidade militar foram seriamente afectados nos Estados africanos pelos partidos únicos devido à repressão, incapacidade de levar ao desenvolvimento, a pobreza e conflitos patrocinados pelos respectivos aliados estratégicos. Assim, conclui-se claramente que Sistema de Segurança Internacional bipolarizado, especialmente virado aos aspectos militares e de estabilidade de regimes favoráveis, constituiu terreno fértil para o nascimento, desenvolvimento e manutenção de partidos únicos, autoritários, militares, intolerantes à oposição, desrespeitadores das liberdades fundamentais e praticantes de acções políticas repressivas, levando a uma grave crise da democracia e agravando a Segurança Humana (Nnoli;1994:1).

O caso de Moçambique, reflecte claramente esta situação. Em nome dos operários e camponeses, o movimento de libertação, FRELIMO, que tinha aglutinado várias organizações políticas, transformou-se em partido único. Com a independência, este partido aprovou uma constituição de orientação socialista; proibiu os partidos políticos; iniciativa económica privada e as manifestações étnicas, linguisticas, ou religiosas como identidades de grupos, justificando esta medida com a necessidade de construcao e consolidacao do Estado. A opcao pela orientacao socialista tornou o Estado alvo de investidas ocidente atraves do regime do apartheid da Africa do Sul e a proibição do gozo das identidades políticas, culturais e económicas tornou as populações inseguras na medida em que elas se viram a partir daí, privadas gozar de valores que esperavam conquistar com a independência do país. Segundo Walker (1997:65) o fim Guerra Fria permitiu questionar a primazia do Estado em duas direcções : o que significa estar seguro e o que deve ser protegido. A simples sobrevivência física não é suficiente, dado que expressões de Poder e ameaça não decorrem apenas de questões militares. Pode-se então definir Segurança em relação a processos sociais, culturais, económicos ecológicos, assim como ameaças geopolíticas. Constata-se assim que para o “Partido Unico” a segurança resumiu-se ao Estado, sendo o regime do apartheid atraves da RENAMO a principal ameaca. A as privacoes sociais, politicas e economicas, as pandemias e calamidades que afectavam muitas vezs ao individuo problemas nao eram vistos como ameacam suficiente para a existencia e consolidacao do Estado.

2.3 O VENTOS DE MUDANÇA : O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO EM ÁFRICA

Importa recordar antes de mais que para o presente trabalho, define-se democratização como um processo que leva a transição de qualquer regime para o democrático que mais do que a mera realização de eleições regulares competitivas, caminha para a construção de instituições que garantam ao cidadão, os direitos e liberdades tradicionais individuais e colectivas que imponham controles múltiplos e mútuos, e acima de tudo para uma sensibilidade comportamental, tendo em conta o contexto social, geográfico e histórico. Tal processo consiste no alargamento das oportunidades de contestação através de oligarquias concorrenciais e no alargamento das oportunidades de participação do cidadão na vida política, económica, social e cultural do Estado com o fim último de garantir a liberdade do medo e das carências, paz social efectiva e o desenvolvimento.

Segundo Picasso (2003 : 67), com o fim da Guerra Fria., alteraram os tradicionais interesses e a necessidade de bloquear a expansão comunista em África. Assim o colapso da URSS, a “desideologização” das relações internacionais e os avanços tecnológicos obrigaram o ocidente a reformular os seus interesses no continente.

Uma vez terminada a Guerra Fria, a utilidade geo-estratégica dos regimes de partido único africanos tinha deixado de existir. Os Estados Unidos, França e Reino Unido passaram a pressionam os regimes africanos para realizarem eleições trazendo deste modo “os ventos de mudança” ao continente africano (Kpuendeh, 1992:2).

A grande pressão ocidental para a realização de eleições em África, permitiu a renovação da legitimidade política dos governantes. Contudo, em muitos países como Zimbabwe, Costa do Marfim, Republica Democrática do Congo, Sudão, Libéria, Líbia e Guine Bissau esta pressão não teve grande consequência em termos de apoio à democratização (ibid).

È preciso reconhecer no entanto, que tal pressão exercida por via do controle sobre recursos da cooperação internacional – a chamada condicionalidade político-económica - apesar de limitar-se a obrigar os Estados a realizarem eleições, empenhando-se pouco na consolidação democrática, criou condições para que os regimes africanos começassem a incluir nas suas agendas de governação aspectos como :

1 Promoção do desenvolvimento.
2 Reforço da legitimidade vertical do Estado através do reforço da autoridade, reciprocidade, confiança, transparência e prestação de contas dos governos.
3 Reforço da legitimidade horizontal, isto é, do sentido de comunidade entre os seus membros.
4 “Despersonalização” do Estado, e das redes patrimoniais e de "clientelismo".
5 Reforço dos Poderes locais como parceiros dos Estado na promoção da Segurança Humana.

A democratização em África veio abrir caminho para a liberdade do medo e das carências, para a participação e direitos políticos e para o desenvolvimento. Estes aspectos trazem consigo a paz efectiva e a liberdade das carências, porque promovem a concórdia, liberdade e desenvolvimento.

Com efeito na declaração solene da Conferência sobre Segurança, Estabilidade, Desenvolvimento e Cooperação (UA, 2003) os lideres africanos definem segurança humana como sendo “ a protecção dos povos e suas comunidades de desastres naturais, ecológicos e degradação ambiental, pobreza e problemas económicos incluindo as condições nas quais suas os indivíduos possam viver plenamente”. No seu conceito de segurança estes lideres incluem, a protecção dos princípios da democracia e liberdades fundamentais dos cidadãos, a liberdade do medo, a paz e a estabilidade, o direito de participar plenamente no processo de governação, no desenvolvimento e no acesso aos recursos e na satisfação das necessidades básicas. (OUA, 2000).

Os atributos acima colocados, demostram que uma década depois da Guerra Fria, os Estados Africanos “regulamentaram” uma prática que foi sendo desenvolvida e aceite como válida. O mérito desta regulamentação, está na mudança dos valores de segurança exclusivamente atenientes ao Estado (Estato-Cêntrica) e ao alinhamento do referente primário de segurança. Nestes termos, a segurança humana, passou a ter atenção e prioridades que efectivamente merecem, na medida em que os seus pressupostos passaram a dominar o pensamento sobre segurança, promovendo consequentemente o desenvolvimento. Este é um mérito das reformas ocorridas com o fim da Guerra Fria.
Tal como nos referimos, a democratização (ver 1.3.2) é um processo. Com a “regulamentação” de princípios da democracia sao alargadas as oportunidades do cidade participar livremente na vida politica, economica e cultural do Estado. Estes processo tras consigo novos valores como as liberdades fundamentais dos cidadãos, o direito de participar plenamente no processo de governação, no desenvolvimento e no acesso aos recursos e visando a satisfação das necessidades básicas. Consequenemente os regimes autoritarios dos partidos unicos sao abolidos e o processo de consrucao do Estado passa a ser mais inclusivo respeitando os diversos grupos identintarios sob ponto de vista politico, economico, religioso, racico ou cultural. Vale a pena recordarmos que no seu agrupamento das categorias de definicao de democracias Mark de Tollenaere, inclui a categoria dos minimalistas que consideram que é suficiente que um país tenha eleições competitivas e regulares para ser chamado democracia Mark de Tollenaere (2002:227). Ainda que nao sejam suficientes, as eleicoes constituiram o primeiro passo rumo a democracia.
[1] Margareth O´Grady, Pequenas Armas e África «http://www.caat.org.uk.information/publication/countries/africa-0909.php» 23 de Maio 2003

[2] Monografia disponível na internet - http--www.iss.co.za-pubs-Monographs-No94Port-Intro.pdf – consultada a 12.04.2006

[3] Cravinho, João “ A União Europeia e o aprofundamento da Democracia em África http://www.ieei.pt/files/Paper_JoaoCravinho_final.pdf - Abril – 2004.

CAPITULO 3 - A PROBLEMÁTICA DA INSEGURANÇA HUMANA EM MOÇAMBIQUE

Os processos de democratização em Africa : Que contributos para segurança humana - o caso de Moçambique

Arão Dava

Tal como nos referimos (ver 1.3.4), na abordagem de segurança humana, o indivíduo é o objecto referencial, isto é objecto central de segurança. Este objecto referencial, estará inseguro quando estiver privado da garantia das suas necessidades básicas, como as liberdades políticas, económicas, culturais e sociais, a paz e o desenvolvimento. Tal como notaremos a seguir, factores internos e externos concorrerm para que Moçambique caminhasse rumo a uma situação de insegurança humana generalizada desde os primeiros anos da independência até aos inícios da década de 90 do século passado.

A independência de Moçambique, em 1975 acontece numa altura em que as Relações Internacionais e regionais eram fortemente dominadas pelas tradições do Realismo com o Estado nacional moderno a constituir o objecto referencial de segurança a ser protegido. Neste sentido constituíam ameaças externas à Segurança Nacional, a agressão militar, espionagem, operações encobertas, invasão territorial e o bloqueio económico. A nível interno as ameaças eram os apoios internos àquelas ameaças externas, acrescidas a noção de subversão[1]. Neste período, a nível internacional o factor predominante era Guerra Fria e a nível regional, a sua réplica, com o domínio dos regimes minoritário de Ian Smith no Zimbabwe e do apartheid na África do Sul.

A réplica da Guerra Fria na região ( proxy wars) terá contribuído para a situação de insegurança humana (medo e as carências), traduzidas na pobreza, injustiça, exclusão política e violência física e estrutural (política, económica e social) particularmente em Moçambique e Angola, cuja alteração passava necessariamente pela democratização.

A história recente de Moçambique mostra claramente que a insegurança humana resultou tanto de factores externos ( Guerra Fria e sobretudo o regime do apartheid) como de factores internos atinentes ao processo de governação do país.

3.1 – FACTORES EXTERNOS

Moçambique conquista a sua independência num contexto internacional marcado pela Guerra Fria, um conflito bipolar cujas “regras de jogo” preconizavam que as vitórias de um constituíam a derrotas do outro.

A medida que as independências iam acontecendo tornava se cada vez mais evidente a replica da Guerra Fria, a nível regional. Na época, a região era dominada pelos regimes minoritários da então Rodésia do Sul (Ian Smith) e da África do Sul (apartheid) que se opunham a libertação dos Estados da região[2]. Agostinho Zacarias explica que quando alcançassem as independências os países, eram arrastados para o debate Este-Oeste, antes mesmo de efectuarem o debate nacionalista sobre suas estratégias de desenvolvimento. Os que tinham importantes relacionamentos com a URSS eram vistos pelos EUA como potenciais inimigos e vice-versa. Este facto terá deixado pouco espaço para que os novos regimes mergulhassem nas suas próprias realidades e definissem por si próprios as suas opções estratégicas e estratégias de desenvolvimento (Zacarias, 1991:144).

Havendo por parte do ocidente a necessidade de travar a expansão do comunismo, o regime do apartheid, que desde o Fim da Segunda Guerra Mundial, tinha conseguido se rodear de alguns “Estados tampão”[3] favoráveis ao seu governo, apresenta-se como defensor e bastião do capitalismo na região.

A independência de Moçambique em 1975, foi percebida como uma forte ameaça à África do Sul e Rodésia do Sul, os dois regimes de minoria branca que restavam na região. Com a independência desta colónia portuguesa, os regimes de minoria branca, percebiam uma ameaça dupla. Por um lado, a ameaça de perder o seu poder em benefício de uma região de regime de maioria e por outro lado o facto de esses regimes poderem vir a ser comunistas. A propósito, Samora Machel tinha escrito poucos anos antes do fim da luta armada

“ Damos a nossa solidariedade e apoio total ás forças nacionalistas que na Rodésia, África do Sul e Namíbia lutam contra o regime de Salisbúria e de Pretória. A luta de libertação dos povos da África Austral tem impacto imediato e directo na nossa luta e explica os laços próximos que nos unem.” (citado por Muslow, 1985:70).

Este posicionamento de Samora deixou clara a sua visão sobre o “Status Quo” regional e que a independência de Moçambique não seria um fim sem que a região não estivesse totalmente liberta da dominação minoritária.

Efectivamente, Moçambique constituiu-se em Estados de orientação marxista-leninista, e com o apoio da União Soviética, de Cuba e da China, trabalhou com o ANC, na África do Sul e com a ZANU-FP, na Rodésia do Sul, numa iniciativa destinada a derrotar a dominação minoritária branca na África Austral. Cinco anos depois da independência de Moçambique, a Rodésia do Sul torna-se também independente, e adopta o nome de Zimbabwe pondo fim ao regime de minoria branca.

O papel de Moçambique para a independência do Zimbabwe e para a transformação da Organização dos Países da Linha da Frente, OPLF[4] numa organização de cooperação regional (SADCC) destinada a diminuir a dependência económica da região especialmente em relação a África do Sul trouxe perturbações à preponderância sul africana sendo deste modo interpretadas em Pretória como grande ameaça a Segurança Nacional[5], e provocando deste modo uma resposta rígida da África do Sul, no sentido de preservar a intocabilidade do apartheid (Abrahamsson e Nilsson,1998:73-107).

A resposta rígida sul-africana consistiu na reformulação radical da política de confronto com a oposição, pondo fim a política de desanuviamento e dando início a chamada Total Nacional Strategy sob liderança do Primeiro Ministro P.W. Botha e do Ministro da Defesa, Magnus Malan de modo a, de uma maneira mais agressiva, possibilitar a sobrevivência do sistema do apartheid.

O cerne da Total Nacional Strategy era a abordagem "holistica" e militarista de combate ás ameaças ao regime do apartheid, tanto domesticamente quanto internacionalmente. Esta estratégia tinha como ponto principal a desestabilização[6] militar directa, através da intervenção em larga escala, sem contudo declaração de guerra em países da região. Além disso, ela previa assistência a grupos anti-governamentais (UNITA em Angola e RENAMO em Moçambique), assistência financeira a guerrilheiros, sabotagem a alvos económicos e militares dos OPLF, coerção económica e envolvimento em golpes militares (Abrahamsson e Nilsson, 1998:89).

Segundo Hanlon, (1986:29) a desestabilização levada a cabo pela África do Sul não foi somente realizada como defesa do apartheid. As consequências catastróficas da desestabilização em forma de sofrimento humano em Moçambique são, em grande escala, um efeito de duas diferentes “necessidades” políticas e internacionais que coincidiram : por um lado, a necessidade sul-africana de defender o sistema do apartheid e, por outro lado, a necessidade “ocidental” geral de recolocar as experiências socialistas do terceiro mundo na esfera ocidental.

A Total Nacional Strategy era uma resposta a uma análise que indicava que a África do Sul estava em face de uma possível extinção, isto e, uma devastação total. Embora tal devastação fosse apresentada como um "complot" comunista, a sua força retórica era grande e residia em dois aspectos :

1. Um dizia respeito a percepção do perigo vindo da União Soviética, agindo na região por via de Moçambique e Angola independentes, através Congresso Nacional Africano (ANC) e da Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO).
2. O outro consistia na luta contra o sistema do apartheid em favor de um sistema político baseado no princípio de um homem – um voto.

O primeiro era principalmente analisado sob forma de uma ameaça ideológica ao capitalismo e a economia de mercado, enquanto que o último tocava muito mais profundamente a comunidade "bóer" sul-africana.

Embora as consequências ideológicas de uma tomada de poder comunista fossem seguramente horrorizantes no meio político conservador sul-africano, a percepção de uma extinção da cultura, valores e missão histórica dos "boers" na região era encarada quase que como um holocausto. Daí que todos os meios foram usados para debelar as ameaças (Abrahamsson e Nilsson, 1998:89).

No quadro da implementação Nacional Total Strategy as autoridades sul africanas, após a independência da Rodésia do Sul, aproveitam-se da MNR, um movimento criado pelo regimes de Ian Smith para travar a luta de libertação do Zimbabwe, para as suas acções de desestabilização em Moçambique (Taju:1988).

Segundo Abrahamsson e Nilsson, (1998:163) instrutores militares sul-africanos foram colocados em diferentes bases do território moçambicano e ensinado a tirar proveito das contradições locais criadas pela governação da FRELIMO (ver 3.2 deste capitulo) para se estabelecerem nas zonas rurais de Moçambique.

O padrão era de que após um primeiro período de alguns meses em que se adoptava uma atitude suave em relação a população, começava a desestabilização, ou seja ataques destruidores contra todas as infra-estruturas que representavam a FRELIMO ou o Estado.

Segundo Abrahamsson e Nillson (1998 : 253-256) as pessoas que eram membros conhecidos da FRELIMO ou os funcionários públicos, tais como professores e pessoal de saúde, foram mortos e mutilados. A população que vivia em aldeias ou pequenas localidades, foi alvo de perseguições para se sentir obrigada a fugir para o mato e afastar-se da influência da FRELIMO. A partir da segunda metade de 1982, a desestabilização militar utilizou todas as formas ao seu dispor dirigindo-se contra dois tipos principais de alvos :

Em primeiro lugar as infra-estruturas importantes do ponto de vista económico. Com a destruição destas infra-estruturas como estradas e pontes ficava aniquilada a capacidade do Estado de fornecer aos cidadãos, condições básicas de sobrevivência.

Em segundo lugar as infra-estruturas sociais do campo, especialmente escolas e instituições de saúde. A este respeito foram especialmente claros, os ataques contra instituições de saúde e escolas com regime internato. Assim, mandar os filhos para um internato ou ser internada numa maternidade do campo implica muito mais risco do que estar fora das instituições modernas da sociedade (que representam o Estado).

Em consequência desses dois tipos de acções, no fim da Guerra, 28% da rede de estrada estava destruída, isto é intransitável, 35 % degradada e a ponte sobre o rio Zambeze, que liga o norte e sul destruída; as linhas-férreas de Sena, ligando Tete ao Porto da Beira e Cuamba-Lichinga vital para o acesso de Niassa ao porto de Nacala estavam destruídas; cerca de 30 % dos furos de água na zona rural foram tornados inoperacionais, 70 % da barragens e 30 % do sistema de irrigação tornaram-se inoperacionais; cerca de 30 % da rede armazenista retalhista (loja e cantinas) foi destruída; 87 % das rede de correios ficou destruída, 70 % dos escritórios da administração, 58 % dos veículos, 50 % da rede da rádio-transmissão das administrações distritais e localidades foram destruídas; cerca de 40 % dos centros de multiplicação de semente, 38 % dos viveiros de plantas foram destruídos ou tornados inoperacionais, 66 % dos tanques carracicidas para gado também foram destruídos ou tornados operacionais (Diogo, 2002: 210-211).

Cerca de 46 % da rede escolar de ensino primário (EP1) e 28 % das escolas técnicas rurais foram destruídas ou tornadas inoperacionais; 36 % dos postos de saúde, particularmente nas zonas rurais, também foram destruídos ou tornados inoperacionais (Diogo, 2002: 210-211). Estima se que um milhão de pessoas tenham perdido a vida, mais de cinco milhões e trezentos mil (33 % da população) forçadas a deslocar se dentro do país, mais de um milhão e quinhentas mil (9,4% porcento da população) fora do país e cerca de cem mil tenham feito parte das forças da FRELIMO e da RENAMO (Diogo, 2002: 210-211).

Estes dados mostram claramente que as pessoas que no deveria constituir objecto referencial de segurança, foram as principais vitimas. A insegurança humana resulta do medo e das carências. Devido a guerra as populações viviam inseguras pelo medo de serem usados como soldados, ou simplesmente mortas. A destruição de infra-estruturas reduzia a capacidade não só do Estado fornecer os meios de sobrevivência a população mas a capacidade das próprias populações satisfazerem as suas necessidades básicas, privando as do acesso a educacao, saude, desenvolvimento e sobretudo da propria vida..

3.2 – FACTORES INTERNOS

A independência de Moçambique em 1975, trouxe consigo as expectativa de bem estar, isto é, de liberdades do medo e das carências, assumidos como resultantes da colonizacao. Esta expectativa acabou sendo frustada poucos anos depois da independência, isto porque, as opções político-económicas do Estado, conduziram a alguns extractos da população moçambicana, (principalmente nas zonas rurais como veremos adiante) a uma situação de privação relativa. Só para recordarmos, a privação relativa constitui o fosso entre, por um lado, o que consideramos como sendo nosso direito ter, fazer, ser e por outro lado a nossa percepção sobre aquilo que outras pessoas, grupos de pessoas ou instituições nos permitem em termos de recursos e capacidades para satisfazer aquilo que assumimos como sendo nosso direito (Festinger, 1962 :262).

Privando as populações da satisfação das suas necessidades básicas, o Estado tornou-se deste modo promotor de insegurança humana, reduzindo ao objecto referencial de segurança - o homem – o direito do seu bem estar e remetendo-o ao medo e as carências, isto e a privação do gozo das suas liberdades políticas, económicas e culturais, que se traduziam na pobreza, injustiça, e violência física e estrutural (política, económica e social).

A segurança humana só pode ser alcançada através da garantia de factores como a democracia, direitos humanos, desenvolvimento económico, sustentabilidade do meio ambiente e estabilidade militar tendo sempre como referencia primaria as pessoas (Solomon e Cilliers 1996:6). Entretanto, no processo de construção do Estado moçambicano, “o partido único” adoptou, sob ponto de vista político, um sistema socialista “ditatorial”, sob ponto de vista económico, uma estratégia de desenvolvimento socialista e, sob ponto de vista militar, uma estratégia de segurança “estato-céntrica”, consequentemente o Estado vive 16 anos de instabilidade politico-militar e economicao.

Assim, a esperança dos moçambicanos em ver a sua segurança garantida com a independência tornou se rapidamente num pesadelo, devido à desestabilização sul-africana do apartheid, contra o modelo de governação e às estratégias de desenvolvimento adoptadas pela FRELIMO.

Ao invés de ser promotor de segurança, o próprio Estado acabou virando factor de insegurança do indivíduo, nomeadamente ao adoptar um modelo político de orientação socialista e de partido único que acabou ignorando totalmente os direitos e liberdade individuais a favor das colectivas, ignorou igualmente as especificidade culturais e religiosas a favor da modernidade de um Estado laico, os valores tradicionais a favor da modernidade do Estado, ignorando as diversidade tribal e regional a favor da nação. É preciso, no entanto, reconhecer que o modelo foi adoptado dentro de um contexto, muito próprio e se calhar necessário. Tal como explica Zacarias, na altura da independência duas opções se desenhavam para Moçambique ou se virava para o Leste ou para o Oeste[7] (Zacarias,1991:143).

O Estado moçambicano, não nasceu de eleições, referendos ou outros tipos de negociações. Ele é fruto de uma insurreição geral armada do povo, organizado e dirigido pela FRELIMO contra o regime colonial português. Esta insurreição foi fortemente apoiada pelos países de orientação socialista. A opção pelos países de orientação socialista apareceu com forma de desligar do ocidente que durante muitos anos deu apoio a Portugal.

Este facto teve consequências profundas nos processos subsequentes, nomeadamente na natureza do Poder e do Estado que se criou e no sistema político que instituiu. Foi a Guerra Fria e o apartheid arrastaram o pais para o debate Este-Oeste numa perspectiva de segurança Estato-Cêntrica e militarizada, não permitindo qualquer espaço de manobra num debate nacionalistas, numa perspectiva de Segurança Humana (Zacarias 1991 :144 e Hunguana, 2006:5)[8].

De acordo com Hunguana, uma vez proclamada a independência e fundado o Estado moçambicano, entrou-se na complexa fase da luta pela afirmação, sobrevivência e consolidação. Assim, neste processo de afirmação, sobrevivência e consolidação foi institucionalizado o “Poder Popular”, que veio a significar a “ditadura da aliança operário camponesa”, isto é, uma política geral exercida no interesse dos camponeses e dos trabalhadores, e por outro lado, a criação de instituições específicas no sentido de possibilitar a participação social na vida política (Hunguana, ibid.).

Entretanto, de acordo com Bastos, (1999:170), estamos perante uma ditadura quando, o regime político, faz uso de uma filosofia ou ideologia exclusiva ou liderante, isto é, quando o Poder é sustentado por um conjunto de ideias ou princípios que não aceitam alternativas ao modelo de sociedade vigente, nem permitem a existência legal de oposição. Bastos (ibid), acrescenta igualmente está-se perante uma ditadura quando, existe um aparelho destinado a impor a ideologia a nível político, policial educativo e económico, e por outro lado quando não existe uma efectiva garantia de direitos pessoais dos cidadãos, não existe livre participação na designação dos governantes e nem um controlo do exercício das funções dos governantes.

Como podemos observar o partido único dirigido pela FRELIMO, contribuiu substancialmente para a insegurança humana, resultando em grande parte de problemas como a pobreza, injustiça, e violência física e estrutural (política, económica e social) através das seguintes acções :

A institucionalização do “Poder Popular" e a problemática dos direitos fundamentais - Tal como nos referimos anteriormente, o “Poder Popular”, significava uma política geral exercida no interesse dos camponeses e dos trabalhadores, e por outro lado, a criação de instituições específicas no sentido de possibilitar a participação social na vida política (Hunguana, 2006:5).

Com a instituição do “Poder Popular” ficava automaticamente excluída a possibilidade de existência de uma oposição política, já que a FRELIMO, em nome dos operários e camponeses, dirigia o Estado sem alternativa nem alternância.

Segundo Lalá e Ostheimer com a independência foi adoptada uma constituição, na qual se definia o papel da FRELIMO como forca de liderança do Estado e da sociedade, bem como assegurava a legitimação do partido único, eliminando deste modo, qualquer forma de pluralismo social (Lalá e Ostheimer (2004:4). Estas autoras acrescentam que os dissidentes da FRELIMO e membros da oposição que não optaram pelo exílio, rapidamente viram se forcados a integrar campos de reeducação na província do Niassa (campos de operação produção).

A reivindicação de direitos básicos individuais, tais como liberdade de crença, opinião e associação, o pluralismo partidário, a independência dos tribunais, as eleições livres e secretas e eleição do presidente da Republica eram vistas pelo Estado como ameaças e crimes contra o Estado.

Face a um sistema político que incluía características patrimoniais, tornando o Estado numa fonte de acumulação de privilégios e recursos materiais para os que a ele tinham acesso, a exclusão era o sentimento de largos segmentos da população.

O exercício do Poder Popular a problemática de exclusão. A institucionalização do “Poder Popular”, iniciada na altura do terceiro congresso da FRELIMO, em 1977, implicou que as funções dos grupos dinamizadores[9] foram distribuídas por outras instituições novas.

Entre 1976-77 foram criadas as chamadas organizações democráticas de massas com destaque para OMM e a OJM, através das quais se estabelecia o relacionamento entre o Poder Político e a população (Abrahamsson e Nilson, 1998:256).

As Assembleias Populares, a todos os níveis da sociedade tinham de se transformar nos novos órgãos de debate popular sobre a política exercida. Assim acabava a fase espontânea de revolução e o “Poder popular” iria ser consolidado em instituições fixas. Contudo, estas transformações não constituíam somente uma simples distribuição das tarefas a realizar, possivelmente o aspecto mais importante contido na institucionalização do Poder era a visão sobre a chefia (Abrahamsson e Nilson, (op.cit.):260).

Segundo Hanlon (1984:135) com a institucionalização do “Poder Popular” a imagem da FRELIMO era também transformada. Por um lado, a imagem da FRELIMO era de um partido apenas dos melhores revolucionários do povo trabalhador e, contrariamente a situação em que todos podiam ser membros, a participação ficou limitada a uma elite. Por outro lado os critérios utilizados para escolher aqueles que podiam pertencer a essa elite eram uma grande limitação ao recrutamento.

Esta visão de elite, tal como afirmam Abrahamsson e Nilson verificava-se aquando da escolha para as Assembleias Populares. Uma pessoas que quisesse ser membro do partido ou ser escolhida para a assembleia popular, não devia ter colaborado com o poder colonial; não devia ser religiosa e não devia ser polígama (Abrahamsson e Nilson,1998: 260)

Destes critérios somente um - o não ter colaborado com a poder colonial - tinha base de apoio popular, isto porque ele dizia respeito especialmente aos régulos e a outras pessoas de hierarquia colonial que, durante o tempo colonial tinham estado ligados ao sistema colonial. As outras exigências afectavam seriamente grande parte da população, que ficou sem possibilidade de participar no trabalho político e eventualmente frustada com os “métodos de exclusão”, injustos e discriminatórios.

O fracasso da estratégia de desenvolvimento e aumento da Pobreza - Enquanto que a década de 1970 pode ser descrita em larga medida como fase da consolidação do Poder pela FRELIMO, a de 1980 revelou os primeiros sintomas de um Estado em crise. Em termos materiais e económicos, o conceito de Estado, enquanto agente exclusivamente responsável pelo desenvolvimento económico nacional, provou ser um fracasso (Lalá e Ostheimer, 2004: 4).

Moçambique tinha adoptado a orientação socialista como estratégia de desenvolvimento. No entanto, poucos anos depois da independência, a situação económica e social sofriam uma degradação crescente. As medidas de emergência para tentar suster a economia não podiam ser permanentes. Era difícil manter os níveis de emprego na indústria com os baixos níveis de rendimento ou subsidiar a improdutividade das "machambas" estatais e manter também os subsídios para a alimentação das populações urbanas ou para as áreas sociais como saúde, educação e habitação, que acabaram por conduzir a uma deterioração deste serviços (PNUD,1998:51).

O decréscimo dos níveis de produção não podia de modo algum compatibilizar com o nível de crescimento da população, pelo que foi necessário fazer uma contracção de consumo com impactos na redução do bem estar das populações e a consequente deterioração dos seus níveis de vida. O estabelecimento de aldeias comunais e a consequente recolocação das populações à força despoletaram forte resistência por largos sectores da população rural.

De acordo com o PNUD, (1998:51), nos princípios da década de 80 a estratégia socialista apresentava sinais evidentes de desmoronamento nomeadamente pelo crescimento do nível económico sem disponibilidade de divisas e pelo déficit no orçamento do Estado provocado pelos subsídios estatais á educação, saúde e despesas correntes do sector estatal, incluindo empresas estatais

Tal desmoronamento resultou na incapacidade do Estado em satisfazer as necessidades humanas básicas tais como educação, saúde, alimentação e vestuário, sobretudo nas zonas rurais. Resultou por outro lado, na privação relativa das populações, atendendo a expectativa de melhoria das suas vidas como resultado da independência.

A tradicional economia de subsistência e a iniciativa privada não tinham lugar no modelo socialista de desenvolvimento implantando, marginalizando grandes segmentos da sociedade que se desiludiam cada vez mais com a o governo da FRELIMO (Cabaço -1995 :93).

Face a este cenário caracterizado pela incapacidade do Estado em satisfazer as necessidades básicas, agravado pela exclusão da economia de subsistência e da iniciativa privada na estratégia de desenvolvimento socialista, grandes segmentos da população viviam privadas das suas necessidades humanas básicas, estando deste modo humanamente inseguras, isto se considerarmos que, a segurança humana constitui o bem estar do individuo, traduzida na liberdade do medo e das carências. Vale a pena recordarmos que nas ameacas a seguranca humana, incluimos o colapso financeiro e econonomico do Estado.

A negação das especificidade sócio culturais - O slogan “ matar a tribo para se construir a nação” foi demasiadamente propalado na fase inicial de construção do Estado em Moçambique.

Esta concepção ideológica preconizava a negação das especificidade dos grupos socioculturais, com vista a edificação de um Estado Nação. Um exemplo claro desta atitude é o discurso de Samora Machel, citado por Munslow (1985 :77-78) que ataca os "tribalistas" e "regionalistas", não descrevendo as origens do seu aparecimento como um fenómeno sociológico, mas sim como um fenómeno que possa ser morto pela vontade política.

Na opinião de Muslow a argumentação de Samora centrada na convicção de que a guerra de libertação e o Poder já tinham posto fim ao raciocínio em termos de etnias[10], daí que o "tribalismo" e o "regionalizo" não tem quaisquer raízes na sociedade, tratando-se de somente de infiltração:

“...estamos infiltrados. Há muita gente que sabe disto e não faz nada porque os bandidos tentam buscar apoio tribal. Mas a nossa luta matou a tribo. Foi a primeira coisa que nós matamos, porque a força do inimigo é o “tribalismo” Por isso não hesitamos em actuar contra os tribalistas, racistas e regionalistas. Matamos a tribo para que a nação pudesse nascer...” (Muslow 1985 :77-78)

Eliminando o direito a etnia e a tribo, Machel eliminava uma das principais fontes do legitimidade do Poder Popular.

A marginalizarão de segmentos considerados elites de certos micro-espaços em benefício de outras, contribuiu para facilitar a instrumentalização destas, tanto por interesses externos como por elites internas ávidas de poder e recursos. A construção do Estado, alicerçada na política de distrução das identidades étnica e tribal, implicou a desvalorização do poder religioso, moral ou espiritual de diversas elites locais. Esta política ameaçava valores. Tal como afirmamos no principio, em situações de opressão, discriminação, privação e isolamento, a defesa preservação de valores leva a comportamentos defensivos e agressivos. O caso de Mocambique com o elevado apoio de elites locais a RENAMO, durante a guerra de desestabilizacao, reflecte a revolta a politica adoptada pelo Estado.

Enquanto o sistema político e o Estado garantiam segurança pessoal e social não houve problemas mas, quando o sistema político e o Estado moderno deixaram de Poder garantir segurança pessoal ou social, a população tenta estabelecer e consolidar as suas estratégias tradicionais de sobrevivência que se baseiam-se nos princípios organizativos da sociedade tradicional, nos laços familiares e na responsabilidade mútua pela sociedade local (Baptista Lundim:1992: 5).

Baptista Lundin (op. cit.) acrescenta que a recorrência aos sistemas de organização social baseado na tradição não foi somente resultado das consequências catastróficas da guerra. Ela tem também origem na forma de governação adoptada pela FRELIMO, em que a nível da educação, as línguas locais são reprimidas e as práticas religiosas tradicionais e suas cerimónias são definidas como superstição que tem que ser combatidas.

Posto, isto podemos inferir que a negação da liberdades culturais, remeteu as populações a uma situação insegurança humana, na medida em que esta acção privava as populações do direito de satisfação da sua necessidade básica, a privação desta liberdade resultara na insegurança humana. Vale a pena reordarmos uma vez mais que a privacao das liberdades culturais e religiosas e uma ameaca a seguranca humana.

A exclusão da autoridade tradicional dos círculos de tomada de decisão - Nas sociedades tradicionais africanas as boas relações mútuas entre os membros da mesma família, clã ou grupo étnico constituem a base do sistema. No entanto, o Estado colonial português, com a exploração económica colonial, destruiu os traços característicos da reciprocidade pré-colonial. Para compensar os cidadãos, eles foram autorizados a conservar o direito a partes da sua cultura, tradições e práticas religiosas. O régulo tornou-se fiel da balança entre a legitimidade e a opressão colonial. A sua capacidade para fazer este equilíbrio tornou decisiva para o grau de legitimidade dos Estado colonial aos olhos da população (Abrahamsson e Nilsson, 1998:253-256).

A transformação da FRELIMO, em 1977, em partido de vanguarda Marxista-Leninista, no III Congresso, contribuiu para a eliminação definitiva de qualquer possibilidade de integração da autoridade tradicional nos círculos de tomada de decisão. Tal como afirmam Abrahamsson e Nilsson :

“a primeira tomada de medida foi a destituição dos administradores distritais portugueses. Entretanto, o distrito continuou a ser o nível administrativo mais baixo do aparelho do Estado e a FRELIMO considerava de muita importância ser representada a esse nível por pessoas que fossem da sua confiança política, assim autoridade tradicional foi abolida por decreto e no seu lugar foram colocados os comités locais do partido”. (Abrahamsson e Nilsson 1998 : 253)

A FRELIMO ao eliminar a autoridade tradicional, eliminou uma das fontes de legitimidade e impulsionou a prática de cerimónias tradicionais ilegais, o que superficialmente parecia quebrar as ligações também com outra fonte de legitimidade. Abrahamsson e Nilsson afirmam que :

“ Apôs a independência, o exercício religioso foi declarado como actividade privada cuja prática só deveria ter lugar no âmbito familiar. As práticas religiosas públicas em diferentes comunidades religiosas deixaram de ser possíveis. No entanto a prática religiosa tradicional não foi definida como religião com o mesmo significado que as outras . As suas cerimónias com ligação a fertilidade da terra e pluviosidade eram consideradas como superstição. Visto que a superstição era inimiga declarada da modernização e do racionalismo devia ser combatida” (Abrahamsson e Nilsson 1998:255).

Para a população local, no entanto, não desapareceu a legitimidade do papel do régulo como portador de conhecimentos sobre as tradições locais. Essa legitimidade continuou a existir como uma corrente forte em todas as camadas populacionais.

O facto de a FRELIMO ter ignorado a força dessa corrente faz com que se tenha perdido a possibilidade de ligação com os princípios da legitimidade das decisões políticas sobre a organização da produção de distribuição dos recursos sociais, que guiavam a população no seu julgamento sobre as medidas introduzidas pelo novo poder estatal.

Tal como afirma Weimer (2002:55-80) “as guerras civis, rebeliões e revoluções podem ser interpretadas como manifestações de uma parte significativa da população contra as instituições estabelecidas”, porque não reconhece a legitimidade e/ou a eficácia de algumas ou de todas as instituições do Estado. A rebeldia contra as instituições do Estado é um dos factores que explica que a guerra se tenha estendido a todo território apesar da redução significativa do apoio material externo que a RENAMO sofreu na segunda metade da década de 80.

Finalmente podemos concluir que as opções político-económicas da FRELIMO, logo após a Independência tiveram a curto e médio prazo efeitos políticos, económicos e sobretudo sociais adversos na medida em que remeteram as populacoes do Estado a uma situação de insegurança humana generalizada. Tal insegurança resultou principalmente das políticas de exclusão e privações que predominavam o modelo de governação adoptado. Longe de incluir a governação da FRELIMO excluía política, económica, cultural e socialmente diversos extractos da sociedade na medida em que negava as diversas especificidades e privava as populações dos seus direitos políticos, culturais e económicos. Este modelo longe de levar ao desenvolvimento remetia-as cada vez maior pobreza, contraria a expectativa de bem estar e liberdades como resultado da independência.
A exclusão a nível interno, resultou no descontentamento de lideranças o que facilitou a penetração externa do apartheid para a desestabilizacao remetendo a população e o Estado a uma situação de insegurança, resultante da guerra de desestabilizacao, que para alem das mortes destruiu as infraestruturas tidas como fundamentais para o desenvolvimento do pais.
[1] Uso sistemático de violência para forçar mudanças sociais políticas e legais .
[2] A derrota do capitalismo na África Austral significava para a África do Sul e para a Rodésia a queda dos respectivos regimes de minoria branca vigentes.

[3] A ocidente estava a Namíbia, ocupada pela África do Sul que por sua vez fazia fronteira com a colónia portuguesa Angola, norte fazia fronteira com a colónia britânica Rodésia e a oriente com a colónia portuguesa Moçambique.

[4] Front Line States – Organização dos Países da Linha da Frente composto por Tanzânia, Moçambique, Zâmbia, Botswana e Angola.
[5] Importa recordar que frequentemente a noção de Segurança Nacional tem sido usada como um princípio autoritário de justificação de práticas políticas
[6] O investigador sul-africano, Deon Geldenhus citado por Hanlon, (1986:29), define a Desestabilização como um método político para obrigar mudanças sem necessariamente ter de derrubar o governo. Isto significa que podem ou não incluir mudanças estruturais mais certamente visam mudanças fundamente ou uma reorientação política, sendo que o objectivo principal do desestabilizador é plenamente político.

[7] Dificilmente conseguiria ir para o ocidente devido aos compromissos Portugal com a OTAN.
[8] Juiz Conselheiro Teodato Hunguana “ Da Liberdade de imprensa e da Eventual Revisão da lei de Imprensa” . comunicação apresentada por ocasião dos 80 anos do jornal notícias, 14/04/2006
[9] Num certo sentido, os grupos dinamizadores foram órgãos revolucionários, que tomaram o poder local quando o Estado colonial deixou de funcionar.

[10] Segundo John Hutchinson e Antony Smith, citados por Malaquias (2003:96) etnia ou grupo étnico é um grupo populacional humano com mitos de ancestral comum, memória histórica partilhada, um ou mais elementos de cultura comum, uma ligação com um território e sentido de solidariedade entre, no mínimo alguns dos seus membros.
Para Magode, etnicidade é um conceito que envolve muitas dimensões, podendo ser um fenómeno de identidade étnica, no sentido em que divide os limites espaciais e sócio culturais de uma comunidade.
Para Magode, a etnicidade é considerada um critério de classificação e de ordenamento de formações sócio-culturais em termos de identidade social e que pode, de igual modo, traduzir-se em reacções de contestação ou reivindicativas de um relacionamento inter-étnico equilibrado num determinado sistema de relações políticas (Ibid.)
Sob esta perspectiva, Magode considera ainda que a etnicidade recorre a sistemas de símbolos étnicos, traduz um consciência colectiva e serve de instrumento de diferenciação de posicionamentos políticos com consequências inevitáveis no relacionamento inter-étnico.